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Millás: uma linha ténue

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Juan José Millás esteve em Portugal para promover o seu mais recente livro. ‘A Mulher Louca’ é um livro delicioso sobre os problemas da linguagem e as fronteiras entre ficção e realidade.

“O que se passa no romance é uma metáfora do que se passa na vida. Não apenas na minha vida mas na vida de todos. O ser humano é habitado por um eu exterior que é o que parece que manda e um eu mais profundo, o subconsciente, que é o que manda de facto. Há mais de um Millás, pelo menos há dois, e normalmente não estão de acordo. Esta divisão está presente em todas as pessoas. Uma coisa é que isto exista, outra é que o assuma.” Quem fala assim é Juan José Millás, a propósito do seu mais recente livro, ‘A Mulher Louca’, um romance em que o narrador e o escritor se confundem. Se no início da narrativa temos a certeza de que Júlia é a mulher louca que dá o título ao livro, no decorrer da ação ficamos com dúvidas sobre se o título não deveria estar no plural e se “a mulher” não devia passar a “as pessoas”.

A história? Uma rapariga, a tal Júlia, vê palavras como se fossem aparições e cuida de uma mulher com uma doença em fase terminal. Millás entra na história quando esta, de nome Emérita, toma a decisão de recorrer à eutanásia e o escritor/personagem na qualidade de jornalista é contactado para escrever a sua história. Mas dizer isto não é contar nem metade de ‘A Mulher Louca’, um romance que trata, sobretudo, dos problemas da linguagem. Prepare-se para rir muito e para ficar absolutamente espantado, sem saber muitas vezes onde está a fronteira entre ficção e realidade.

Quantos Millás existem?

Há pelo menos dois e normalmente não estão de acordo. Isto não acontece apenas a Millás, acontece a toda a gente. Toda a gente é habitada por mais do que uma pessoa, por isso o ser humano é o único animal que faz coisas que não lhe convêm. O desdobramento que acontece no livro é a metáfora do desdobramento que acontece na vida real. Os seres humanos são muito contraditórios porque estão divididos: temos o coração dividido. A identidade aparente não é uma identidade real.

Neste livro, começamos por perceber qual é o Millás que manda, mas depois começamos as confundir quem é quem.

Confunde-se porque este romance é um livro em que se pretende confundir os espaços de que é composto. É em parte uma autobiografia, em parte um romance, em parte uma reportagem. As fronteiras entre estes géneros estão apagadas, do mesmo modo que se apagam as fronteiras entre os Millás que existem. Todas as fronteiras estão derrubadas.

E também as fronteiras entre a vida e a criação literária.

Para dizer de uma forma mais inteligível, as fronteiras entre a vida e a ficção.

Quem é esta Júlia? É um alter-ego seu? Também lhe acontece ver as palavras como seres vivos?

É, em certa forma, um alter-ego meu, na medida em que encarna uma preocupação que tenho pela linguagem e pelas palavras. Sempre que vemos um académico ou um gramático ou um professor a falar da língua, usam sempre termos muito laudatórios, muito excessivos, mas ninguém fala dos efeitos secundários da língua. A língua é uma grande invenção da humanidade, sem dúvida, a medicina é uma grande invenção da humanidade, sem dúvida, mas nas bulas dos medicamentos inclui-se uma parte com os efeitos secundários indesejáveis e nas gramáticas nunca se inclui os efeitos secundários indesejáveis. A língua tem efeitos secundários indesejáveis, como o facto de ser ela que nos possui e não nós que a possuímos a ela, ou o facto de que nós não falamos mas somos falados pela língua. Quem se puser a ouvir uma conversa de namorados no café na mesa ao lado vai reparar que os namorados dizem as mesmas tolices que dizem todos os pares de namorados em todos os cafés do mundo. Porquê? Porque não são eles que falam, é na verdade a língua que fala através deles.

É isso também que faz o escritor com a língua?

O trabalho do escritor consiste em opor-se à língua, em dizer: “Vou fazer o que eu quero, não o que tu queres!” Ou, pelo menos: “Cheguemos a um acordo.” Creio que a escrita literária é o resultado de uma negociação com a língua. É um ponto intermédio. Toda a escrita literária é um resultado da tensão dessa negociação com a língua.

Então, a função do escritor é fugir da normalidade das palavras?

Absolutamente.

Fala da língua como uma entidade superior.

Bom, a língua é uma invenção do ser humano, mas independentizou-se. A língua é um sistema autónomo, da mesma forma que o monstro do dr. Frankenstein se independentizou do seu criador. Nem tu nem eu podemos influir na língua, mas é a língua que nos faz ser altos ou baixos, magros ou gordos, tolos ou espertos.

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