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As Ivas depressivas e os Jeovás TDAH’s

Saúde Mental: anda toda a gente doida atrás desse item cada vez mais raro.

Sabe? Uma coisa engraçada de trabalhar com saúde mental é que as pessoas parecem desejar muito um diagnóstico para chamar de seu. Basta a pessoa saber que eu sou psicóloga para passarem-me uma lista de sintomas e perguntarem-me: “Isto é normal?”, ou “Eu estou com depressão?”.

Pior ainda, basta um transtorno mental aparecer nas manchetes para que todos se sintam como se tivessem ganho um bilhete de entrada para a “Feira dos Auto-diagnósticos”. Afinal, quem não adora colecionar diagnósticos como figurinhas? Aliás, hoje em dia, é mais fácil para alguém convencer-se de que tem um problema mental do que comprar um café na esquina. Olhe, por exemplo, para os sintomas “típicos” da depressão: “Tristeza persistente, insónia, incapacidade de se concentrar, perda de apetite, falta de energia.” Quem nunca teve um dia em que se sentiu assim? A diferença é que, na feira dos auto-diagnósticos, estes sintomas são como brindes num pacote de cereais da manhã

Agora, adentremos o picadeiro do “Circo do Transtorno Bipolar” (para complicar um bocadinho). É a condição perfeita para aqueles que parecem buscar um poucochinho de drama nas suas vidas. E olhe só para os sintomas: “Mudanças de humor, tristeza, ansiedade, euforia, irritabilidade, comportamento desordenado.” É como um show de fogos de artifício na sua cabeça! Se você não se identificou com pelo menos um destes sintomas recentemente, então, minha amiga, eu pago-lhe um pastel de nata. Aliás, paga-me você, porque todos nós temos um bilhete para este espectáculo de por a cabeça a andar à roda de quando em vez.

E agora, entremos na pista de dança psicadélica da “Esquizofrenia”. Esta é a pista na rave onde todos se soltam, porque quem precisa de realidade quando pode ter alucinações, delírios e até ouvir vozes em transe total? E os sintomas? “Isolamento social, confusão mental, paranoia, lentidão nas actividades, falta de moderação, perturbação do pensamento, discurso incoerente ou rápido e frenético.” São como movimentos de dança malucos que todos nós fazemos em algum momento! Mais difícil, mas ainda assim bastante comum (conhecidos ou familiares assim, quem os não tem?). Se você nunca experimentou nada disso, bem, acho que vou pedir um pastel de nata extra, porque você é uma raridade um tanto ou quanto bizarra.

O que eu quero dizer com isto é que é muito fácil auto-diagnosticar-se com uma doença grave sem ao certo ser esse o caso. Aliás, recordo-me que na faculdade, não havia aula de psicodiagnóstico ou de introdução à psicopatologia geral que uma pessoa não saísse de lá a auto-diagnosticar-se com 2 ou 3 doenças diferentes. Já para não falar de que quando achávamos que o transtorno que estávamos a estudar não era particularmente pesado, “diagnosticávamos” algum colega, para não perder o hábito.

Brincadeiras à parte, é bom lembrarmo-nos essencialmente de duas coisas: 1) assim como não se diagnostica uma pessoa com diabetes só porque ela está a beber muita água sem fazer um exame de sangue, você não diagnostica uma depressão sem um exame profundo dos padrões emocionais e comportamentais da pessoa num período mais longo de tempo; 2) Da mesma forma que ter uma crise de tosse não quer dizer que você tem pneumonia (provavelmente significa que os seus pulmões estão irritados naquele momento), é preciso levarmos sempre o contexto em conta e atender a muitas outras variáveis e indicadores que não somente uma checklist de internet.

Adicionalmente – e por incrível que pareça (juro)! – você ter alguns sintomas de um transtorno mental não quer dizer que você tenha um transtorno mental. Quer dizer basicamente que você tem uma mente. Uma mente que, naquele momento, está inflamada e a tossir ou a espirrar ou a regurgitar da forma que consegue.

Tempos curiosos estes em que vivemos: nunca a informação e a crescente sensibilização das pessoas para as questões ligadas à saúde mental foi tão grande, ao mesmo tempo que a negligência e a inconsequência de muitos sobre a própria vida reina em absoluto.

Há casos graves! Se a pessoa para de prestar atenção na aula para mexer no smarphone é TDAH, se se irrita é bipolar (ou histérica, se for mulher), e o mais curioso é que ninguém recebeu o diagnóstico do médico ou do psicólogo, e sim do Google.

Um dos perigos da banalização dos diagnósticos é que as pessoas podem começar a identificar-se exclusivamente com o seu diagnóstico. Isso pode levar à criação de uma “identidade de doença” na qual o diagnóstico define quem são. Em vez de buscar maneiras de abordar o problema, algumas pessoas podem usar o diagnóstico como desculpa para padrões de comportamento disfuncionais.

Inclusive, isso pode tornar-se outra identidade condicionada. Como todas as identidades condicionadas, falamos de uma forma que, inconscientemente, nos mantém ligados a elas. O que leva a crenças que nos deixam ainda mais acorrentado(a)s às doenças ou às disfuncionalidades. E isso pode espoletar comportamentos que as solidificam.

Libertar qualquer identidade dá trabalho. É preciso consciência, bem como uma auto-compassividade super curiosa. Podemos descobrir que a maioria das nossas identidades (“sou ansioso”, “sou deprimido”, “sou autista”, “sou doente crónico”, etc.) acabam por ser mecanismos de enfrentamento que nos permitem permanecer pequenos, limitados nos padrões comportamentais e nos ambientes em torno dos quais crescemos.

Por outro lado, o processo de “rotulagem” pode ter os efeitos perniciosos. Há uma grande diferença entre dizer “o João é bipolar” e “o João tem um transtorno bipolar”. Se alguém tem cancro, nós não dizemos “a Joaquina é cancro”, dizemos antes “a Joaquina tem cancro”. Alguém pode ter um diagnóstico, mas isso não é o suficiente para definir a pessoa. Até porque – e falo pela minha própria experiência clínica –, a pessoa pode “estar” naquele momento com alguma condição, mas isso não quer dizer que ela “seja” a condição. O “ser” tem um carácter permanente, ao passo que o “estar” é apenas provisório, ou seja, é passível de se transformar a qualquer momento, se para tal as condições forem criadas e o apoio for o adequado.

Parece curioso também que este termo tão em voga “mãe narcisista” seja tão propagado, quando o transtorno narcísico tem maior incidência em homens…

Atenção: longe de mim querer desvalorizar o desconforto ou sofrimento real de muitas pessoas, muito menos alguma vez me verão a desacreditar as vítimas. Estou só a dizer que, por exemplo, tratar o caso que referi antes da “mãe narcisista” patológica por apenas “rotular” o problema não é o que o fará desaparecer ou transformar. Até pode ser uma etapa inerente ao processo (a de começar a nomear, a identificar as questões, a verbalizá-las), mas em última instância é o seu quadro interno de atitudes, crenças e valores, bem como a sua acção (não a da “mãe narcisista”) sobre o mundo externo que fará a diferença.

É crucial que, como sociedade, promovamos um entendimento equilibrado. Um diagnóstico não é uma desculpa, mas sim uma oportunidade para o crescimento pessoal e a auto-transformação.

Os diagnósticos iniciais servem-nos (a nós, psicoterapeutas) essencialmente como referência, ou se quiser, como um “mapa” do território a explorar. Mas, lá está! O “mapa” não é o “território”, é uma representação do mesmo que nos dá informações e auxilia sobretudo nas pistas a percorrer para sabermos como chegar de um determinado ponto “A” a um determinado ponto “B”, sempre de acordo com o que estrutura o projecto de evolução pessoal e de vida de cada um.

Assim, os diagnósticos ou as doenças mentais devem ser encarados do mesmo modo como se olha para as doenças físicas. Tal como uma doença cardiovascular ou uma doença hepática, sabemos que muitas doenças mentais têm causas definidas, requerendo cuidados e tratamento específicos. E é para nos auxiliar nessa busca de ferramentas apropriadas para intervir de acordo com as necessidades de cada caso que se recorre ao diagnóstico como ponto de partida e nunca como ponto de chegada.

Para além disso, no trabalho que realizo sei que a eliminação do problema que antes levou a pessoa até mim é, nada mais, nada menos, do que o único objectivo a ser perseguido, não raras vezes fazendo-se este objectivo acompanhar ainda do alcance de muitos outros benefícios e capacidades para a pessoa, quase como que “efeitos secundários” de uma boa terapia. Isto é fruto de um trabalho a dois, que nasce de uma relação particular entre duas pessoas, e que inaugura um novo espaço e um novo tempo na vida de cada um, assim como um novo modo de “ser”, verdadeiro. É aí que qualquer que seja o seu anterior “estar” pode ser reformulado, transformado, reconstruído e potenciado numa psicoterapia, através do diálogo (esse mediador de ‘mundos’, interno e externo, e veículo de ligação entre o “eu” comigo mesmo e com o próprio mundo à minha volta) como elemento principal na resolução das questões cognitivas, emocionais, relacionais e comportamentais que estiveram na base desse qualquer e anterior “problema”. Felizmente, posso afirmar que já perdi a conta ao número de pessoas que, quando começaram a sua psicoterapia comigo, descobriram que apenas “estavam” deprimidas; porém, não significando que “fossem” deprimidas.

Com este texto, procuro apenas promover mais e melhor conhecimento, desmistificando falsas crenças e estereótipos, e fornecer novos dados acerca da doença mental e das pessoas que dela sofrem. Infelizmente, a doença mental é com frequência associada ao mendigo que deambula pelas ruas, que fala sozinho; ou com a mulher que aparece na TV a dizer ter 324 personalidades diferentes ou com o homicida “louco” que aparece nos filmes. Palavras como “maluco”, “esquizofrénico”, “psicopata”, “maníaco”, “paranóico”, “bipolar” são vulgarmente utilizadas na linguagem do dia-a-dia, sendo que geralmente as pessoas apenas olham e dizem: “Isto não me vai acontecer de modo algum, não sou maluco, venho de uma família sólida”, ou então: “ esses problemas não me afectam, isso é problema dos outros.”, etc..

O estigma relacionado com a doença mental provém do medo, do desconhecido, de um conjunto de falsas crenças que origina a falta de conhecimento e compreensão, com uma única (e lamentável) consequência para as pessoas, para a sociedade e até mesmo para o mundo: a não procura de ajuda especializada e a perpetuação dos próprios problemas de saúde mental, geração após geração.

Não obstante, ao receber um diagnóstico de transtorno mental, o indivíduo ganha uma nova perspectiva sobre as suas experiências e comportamentos. Isso, no entanto, não implica que ele seja eximido de responsabilidade pelas suas acções. Em vez disso, significa que podemos trabalhar juntos para desenvolver estratégias e habilidades que o ajudem a tomar decisões mais conscientes e construtivas.

A terapia e o suporte profissional são fundamentais neste processo. Eles oferecem um espaço seguro para explorar os desafios específicos associados ao transtorno mental, promovendo a conscientização e a auto-compreensão. Além disso, fornecem recursos e desenvolvem habilidades para lidar com situações desafiadoras e melhorar a qualidade das interacções sociais.

Desconfio que já deve ter percebido que a vida não é só um passeio lindo no parque. A vida é um conjunto de situações bonitas, estranhas, assustadoras e horríveis, com mais ou menos sentido, e que – por melhor que seja – nunca será só fácil de se lidar. Não é possível passar-se ileso pela experiência de viver, sem ficar pelo menos um pouquinho avariado(a) da marmita.

Assim, sofrer, chorar, perder o controlo, estar ansioso ou triste, ficar paranoico ou congelado são só processos que a nossa mente encontrou naturalmente para lidar com essa jornada dura que é viver (neste mundo, pelo menos).

Às vezes reparo que assim que dispara um caso de traição, uma briga familiar, um desentendimento de qualquer ordem vem sempre alguém cravar um “diagnóstico” de transtorno mental. Mas calma lá que nem sempre é assim: há gente que é só egoísta, chata ou sacana mesmo. E, uma vez vais, volto à “vaca fria”: sabe porque é que dar o nome certo é importante? Para responsabilizar os indivíduos. Caso contrário, à primeira vista, receber um diagnóstico pode ser uma delícia. É um sinal de que não é a pessoa que está errada, é apenas o seu cérebro que está empanado. Um diagnóstico é como se fosse um alvará para sofrer (ou fazer sofrer) em paz.

É claro que existe uma linha que separa a (natural) dificuldade de viver e a doença mental. O problema é que ao transformar as dificuldades da vida em patologia, será impossível estar saudável. Agora, quando aceitamos que ter saúde mental inclui ter problemas, sem banalizar a doença, torna-se muito mais fácil ajudar quem realmente tem um transtorno psíquico grave.

É muito mais fácil lidar com uma doença do que com uma grande dúvida existencial. As doenças têm tratamento, as angústias só se atravessam com trabalho empenhado.

É importante, sim, entendermos que alguns estados de sofrimento psíquico ou padrões comportamentais causam prejuízos – sejam nas nossas vidas ou nas de terceiros. Porém, toda essa nossa facilidade em distribuir psicopatologias não indica que estamos, de facto, a ajudar alguém. Colocar toda essa causalidade nos transtornos mentais é minimizar a raiz de inúmeras mazelas, promover desresponsabilizações e banalizar diagnósticos. Não podemos esquecer-nos que, enquanto humanos, estamos sujeitos ao erro, ao sofrimento e à diversidade de subjectividades. Melhor talvez seja a compreensão de que nem toda a dimensão da vida humana cabe num rótulo psiquiátrico.

Meus queridos, os tempos continuam muito difíceis e às vezes dá a impressão de que não há luz ao fundo do túnel… A ideia é fortalecermo-nos e abrirmo-nos cada vez mais ao diálogo e à compreensão, â empatia e à auto-compaixão.

Nem tudo está perdido para quem não consegue ficar “bem na foto”, ou melhor, “bem na selfie” – é bastante difícil encontrar quem goste de si em tudo, quando nos olhamos mais de perto. Aliás, ao longe, todos parecemos muito “normais”… não é?

Os auto-diagnósticos podem levar a uma interpretação errónea dos sintomas, e a verdade é que os diagnósticos de saúde mental são complexos e requerem uma avaliação profissional.

É fundamental entender que um diagnóstico não é uma sentença, mas sim uma ferramenta para compreender e tratar problemas de saúde mental. A busca por uma identidade deve ser direccionada para além do diagnóstico, para a construção de estratégias de enfrentamento e de crescimento pessoal.

Os psicólogos e psiquiatras são profissionais da saúde mental têm a formação e a experiência necessários para realizar avaliações adequadas. Eles levam em consideração não apenas os critérios diagnósticos, mas também as particularidades individuais, a história pessoal e outros factores que podem influenciar a saúde mental de alguém. O diagnóstico correcto é, portanto, o primeiro passo para um tratamento eficaz. E quando estes profissionais propõem um determinado plano de intervenção terapêutica, também o fazem de forma sustentada num raciocínio clínico assente em evidências científicas.

Lembremos, pois, que por trás de cada ‘Iva depressiva’ ou de cada ‘Jeová TDAH’ (ou mesmo de cada ‘Francisca narcisista’ ou de cada ‘Fragoso ansioso’- etc.!) há uma pessoa real com uma história única.

Você pode estar angustiado(a) e não estar doente. Você pode não estar doente e ainda assim melhorar muito através da terapia. Você pode estar doente e o seu tratamento incluir medicação. Você pode estar doente e escolher não usar essa doença como forma de a auto-desresponsabilização; pelo contrário, para se curar e amadurecer. E tudo bem! Não há nada de errado com nenhuma destas categorias. Creio (não sei, lanço só para o universo, mais nada) que apesar dos pesares, um transtorno mental não é um item fashion que uma pessoa escolhe usar porque “está na moda”.

O seu sofrimento merece respeito simplesmente por existir. Cuide de si. Se precisar de ajuda, estamos aqui. Quanto ao diagnóstico, por favor, deixe isso connosco.

Somos mais do que os nossos diagnósticos: somos seres humanos com a capacidade de crescer e superar desafios, independentemente das etiquetas que possamos carregar. Nesta busca por uma identidade, que seja a jornada do auto-conhecimento e da superação, e não uma simples etiqueta.

Sara Ferreira

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