Quem lhe disse que precisava de autorização? Quem foi a primeira pessoa a convencê-la de que, para ser quem é, tinha de pedir licença? Talvez tenha sido a sua mãe, quando a mandou “não ser malcriada” só porque ousou dizer o que sentia. Talvez tenha sido a escola, quando a habituou a seguir filas, a não sair nunca da linha, a ficar caladinha, mesmo quando tinha dentro de si uma explosão de perguntas. Talvez tenha sido o namorado que torceu o nariz porque riu alto e a bom som no jantar, ou o chefe que levantou a sobrancelha quando ousou tomar uma posição, ou a sociedade quando quis ter opinião. Talvez nem tenha sido ninguém em particular: foi o ar que respirou, saturado de mensagens invisíveis mas constantes: “sê pequena, sê discreta, não incomodes, não desejes demasiado”.
E a verdade é esta: crescemos treinadas para servir abnegadamente. Não é exagero, é programação de fábrica. Aprendemos que o amor se mede pela renúncia. E internalizámos tão bem a lição que passámos a viver como candidatas permanentes a aprovação — como se houvesse um balcão imaginário onde se emitem licenças de viver. Licença para descansar. Licença para dizer não. Licença para brilhar sem culpa. Licença para respirar. ó que esse balcão, claro, está sempre fechado.
No outro dia, depois do jantar, levantei-me da mesa já cansada. O meu corpo gritava para desabar no sofá, estender as pernas, deixar a digestão, a natureza e o silêncio fazerem o seu trabalho. Mas o que é que fiz? Fui direita à cozinha, comecei a arrumar pratos, a limpar bancadas, como se a ordem das coisas fosse mais urgente do que a minha própria ordem interna. Não havia ninguém a mandar-me fazê-lo. Era eu, voluntária e cúmplice, a repetir um automatismo aprendido: primeiro os outros, as coisas e depois — talvez, quem sabe — depois eu… No fundo, estava à espera de uma autorização fantasma. E a pergunta ecoou: de quem estou eu à espera para simplesmente — qual Padeira de Aljubarrota —arremessar o meu corpo, pá-para-toda-a-obra, ao sofá?
E não é só comigo, ou não é só na cozinha. É no trabalho, quando aceita infindas tarefas que não lhe cabem só para não parecer “difícil”. É no grupo de amigas, quando preferia silêncio mas sorri para manter a harmonia. É no corpo, quando come o que sobrou em vez daquilo que realmente desejava. É na cama, quando engole o “não” porque aprendeu que o prazer do outro vale mais do que o seu desconforto. É no comboio, quando se encolhe no assento para não ocupar demasiado espaço, como se até o ar tivesse de ser medido em quotas. A vida inteira está cheia destes pequenos gestos de auto-anulação, tão normalizados que já nem reparamos.
Só que viver à espera de autorização tem um preço devastador. Rouba-lhe a vida. Mantém-na sempre em modo esboço do que viria a ser, numa sentença eterna pela vida não vivida, como figurante no seu próprio palco da sua própria vida. Fá-la acreditar que um dia — quando os filhos crescerem, quando o trabalho acalmar, quando finalmente alguém disser que já merece — poderá viver de verdade. É ver a vida verdadeira passar como os navios, enquanto se faz fila para um carimbo que nunca chega. Mas esse dia nunca chegará, minha querida. Porque a única assinatura que falta no papel é a sua.
E o corpo sabe disso melhor do que a cabeça: enquanto espera pela aprovação alheia, o corpo fecha-se, o maxilar trava, a respiração encurta. É a fisiologia da submissão. Mas quando ousa autorizar-se a agir, mesmo que em pequenos gestos, o corpo floresce: os ombros soltam-se, a respiração desce até ao fundo, e a pele parece ganhar mais espaço. O corpo não mente: ele reconhece a liberdade no instante em que a experimenta.
Então pergunto-lhe uma e outra vez: de quem está à espera? Do marido, da mãe, do pai, do chefe, do olhar de uma amiga, da vizinha, de quem nem sequer (a) conhece? A verdade nua e crua é que ninguém vem. Ninguém vai bater-lhe à porta com um decreto oficial a dizer: “Autorizo esta mulher a viver a sua vida em pleno.” Essa assinatura é você que tem de firmar, e se não a fizer, é certo que viverá para sempre como arrumadora de gavetas da vida dos outros.
Mas talvez esteja a pensar: “Está bem, mas como é que eu, depois de anos a fio de condicionamento, consigo de repente começar a dar-me essa tal autorização?” A resposta é simples, mas dura ao mesmo tempo. Sozinha, até consegue dar alguns passos, mas há padrões que estão cravados fundo demais, como tatuagens emocionais feitas na pele da alma. É aí que entra o apoio psicológico. A terapia é esse espelho sem filtro. Um lugar raro, e seguro por excelência, onde deixa de ser avaliada pela performance, pelo serviço, pelo papel que representa. É um espaço onde não tem de pedir licença para existir — e só isso já é suficientemente transformador. Um bom processo terapêutico é como segurar um espelho, mas não um daqueles espelhos distorcidos que a sociedade lhe tem oferecido. É um espelho nítido, onde se vê que é para além das máscaras e dos gestos automatizados. Psicologicamente, chamamos a isto processo de diferenciação: separar aquilo que é genuinamente seu daquilo que foi introjectado — as vozes alheias, os mandamentos culturais, os medos herdados. É duro, às vezes desconfortável, mas libertador. Volto à pergunta inicial, e desta vez responda-me sem anestesia geral: quem é que lhe disse que precisava de autorização? E até quando vai acreditar nessa mentira?
Sara Ferreira
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