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Em terra de Egos, quem vê o outro é Rei

Vivemos na era dos reflexos. Espelhos de bolso, vitrinas de bolso, livros de bolso, conexões de bolso, vidas de bolso. No reino onde o ego reina, cada um(a) é o(a) protagonista da própria peça, escrita, produzida, encenada e representada para plateias invisíveis, mas cuidadosamente seleccionadas. É o reino das máscaras brilhantes, das borboletas nocturnas, da retórica vazia, onde a vulnerabilidade é temida como um invasor estrangeiro, uma fraqueza que ameaça o poder conquistado a duras penas. E como sobrevivem? Enrijecendo as suas fortalezas de aço, blindando-se contra qualquer fenda por onde possa entrar a mais suave brisa dá sentido, tato e empatia.

Um dos melhores elogios que já ouvi foi quando uma paciente, uma vez, ao final de uma sessão, atende o telefone e diz a quem estava do outro lado: “Estou a sair da psicoterapia, sabes o que é? É o sítio onde tu podes falar e a outra pessoa está MESMO a ouvir o que tu estás a dizer”.

Ser capaz de ver (com “olhos de ver”) o outro exige um acto de coragem (especialmente nos tempos em que vivemos) quase esquecido. A coragem de desvestir-se do próprio ego. E como o ego se veste! Com os seus trajes dourados, com suas vozes ensurdecedoras que gritam em meio ao silêncio: “Olhem como eu sou!” Mas há uma grandeza maior em quem silencia esse grito e sussurra, ao olhar nos olhos de um outro ser: “Eu vejo-te.”

Esse acto de “ver” vai além do simples olhar. Ver é penetrar nas fissuras da couraça que o outro esconde com tanto zelo, é reconhecer a beleza que existe nas rachaduras, nas fragilidades expostas. É como olhar para o aço e perceber que, apesar da rigidez, ele carrega em si a marca da sua forja, a memória do fogo que o moldou. E, de repente, o que parecia força absoluta revela sua humanidade vulnerável.

Poucas coisas me (co)movem mais do que alguém que seja capaz de destituir-se do próprio ego, por instantes, para mostrar a sua nudez, a sua fra(n)queza de aço e, por conseguinte, que não cale as palavras, resgatadas da alma, não mais tornada muda, e que constate, enfim, que ainda há ouvidos dispostos a escutar e olhos lacrimejados de mar salgado que acordam de um sonho perdido.

O “olho clínico” a par com a “escuta activa” são importantes habilidades treinadas por psicólogos. Lupa na alma, escuta profunda, totalmente centrada no que a pessoa nos está a dizer, e não o tipo de escuta “normal”, a qual estamos habituados, que geralmente consiste em ouvir (e parabéns se tiver na sua vida alguém que, pelo menos, o(a) oiça!) o outro mas justapondo o que ele diz ao nosso próprio universo pessoal, de forma auto-referencial. Ouvir é simplesmente o elemento físico do escutar. Assim, escutar é o processo de descodificar e interpretar activamente as mensagens verbais (e não verbais).

Muitas vezes ouvimos os outros sem prestar atenção, ou seja, não percebemos o outro, não acedemos realmente ao seu “mundo”, à sua subjectividade, à sua alteridade. Ao que ele nos está a dizer ou a mostrar para além daquilo que é dito ou mostrado. Ou inclusive, no que ele nos diz naquilo que não diz…

Na vida de todos os dias, em geral, grande parte da informação que recebemos num diálogo não chega correctamente, ou então é mal interpretada pelo ouvinte. E porquê?! Porque escutar activamente dá muito mais trabalho… e envolve um grande esforço consciente.

O símbolo chinês para o verbo “escutar” basicamente diz-nos:  “Eu dou-te os meus ouvidos, os meus olhos, a minha atenção plena… e o meu coração”. E, a meu ver, esta seria apenas a melhor definição para “auscultar” que poderíamos ter (se o tivéssemos) num consultório clínico.

No meio deste autêntico deserto de egos em que nos vemos atirada(o)s, encontramos o oásis raro de alguém que fala. Não um discurso vazio, que ecoa no vácuo da própria auto-imagem, mas palavras que brotam da alma. Essas palavras, resgatadas do fundo do ser, revelam a nudez que o ego tanto teme. E há beleza atemporal nisso. Há uma força que só os verdadeiros reis conhecem — a força de admitir a própria fra(n)queza. Fraqueza de aço, pois é no reconhecimento da nossa humanidade que encontramos um poder inquebrantável.

Quantas vezes nos calamos, engolida(o)s pelo ruído do mundo, temendo que as nossas palavras sejam inúteis, ou que os nossos sentimentos sejam um peso demais para os ombros alheios? Mas quando encontramos ouvidos dispostos a escutar, um par de olhos curiosos, atentos ou até marejados, algo se transforma. O ego adormece, e a essência desperta. O mar salgado que banha esses olhos lava as mágoas antigas, e o sonho perdido de conexão encontra, finalmente, seu porto seguro.

Sim, esse quase que perdido e longínquo porto seguro chamado (verdadeira) relação / conexão humana.

Todas as nossas feridas surgem na relação e é através da relação que as curamos. Pode ser preciso uma relação com um profissional, como um(a) psicólogo(a), mas esta relação terapêutica continua a ser uma relação. Não podemos aprender a amar-nos se nunca nos mostraram como fazê-lo, se nunca nos mostraram que somos dignos desse amor, se nunca o vimos reflectido nos olhos das pessoas importantes.

Precisamos que gostem de nós e está tudo bem com isso. Precisamos aprender a manter e a criar relações seguras com as pessoas importantes da nossa vida e a aceitar que não somos 100% auto-suficientes nem temos de o ser. Mesmo que as nossas feridas por vezes nos façam pensar que não devíamos precisar de ninguém para sermos felizes.

Sabia que o problema mais comum na comunicação é não saber “ver” e “ouvir” o outro?!

Aqui entre nós:

  • quando foi a última vez que se sentiu vista(o) e ouvida(o)?
  • ou verdadeiramente escutada(o)?
  • sente genuína atenção das pessoas quando fala com elas?
  • sente-se constantemente interrompida(o)?
  • e mal-interpretada(o)?

Receber críticas construtivas vindo de um lugar de amor e respeito pela sua individualidade é uma coisa. Receber reprimendas e rejeição constantemente só porque você é VOCÊ, isso é outra coisa!

Ninguém deve presença e amor para quem nem consegue ver-nos, escutar-nos, respeitar-nos, quanto mais amar como precisamos.

Família não é apenas um laço de sangue… são as pessoas que você escolhe para estar do seu lado. Por isso, família é quem você sente que é família, pela amorosidade e segurança dessa relação.

Os passos cruciais para se criar confiança genuína entre pessoas não surgem do “cérebro”, mas sim de chegarmos a captar, um pouco que seja, o âmago de alguém. Os olhos e a atenção indivisa são os próximos, e finalmente o coração.

Além disso, cada vez mais existe a noção de que a Vida vai muito além do que conseguimos vislumbrar a olho nu. É na parte emocional que encontramos a resposta para muitas das nossas dúvidas existenciais. Mas se boa parte consegue desbravar todas as “questões” que vão crescendo com os anos, a verdade é que a maioria das pessoas não sabe como resgatar o seu verdadeiro “Eu”. E com isso tem-se gerado o quê? Pessoas frustradas, profissionais robotizados e um vazio existencial.

Entenda que os seus olhos são a sua lupa e que o filme que está a passar é aquele que você projectar. Experimente abri-los de novo, aos olhos, e prepare-se para se demorar em novas visões, novas impressões, novas sensações. Deliberadamente. Tomar uma posição. Começa-se com pequeninos passos de bebé, mas você sabe que está a caminhar. Chegará a um ponto onde olhará para trás e perceberá que os seus passos se vão agigantando até que salta para a frente, e percebe que até ali já fez um caminho. Começa a ser mais você. E há sabedoria imortal num eterno brilho no rosto ou nas palavras que seguem a seguir. Sente-se, sinta-se, apenas por um momento. Para absorver e acalmar o que está cansado, desgastado, na sua delicada alma.

Talvez não haja maior poder do que este: reparar. Como Saramago disse: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Reparar é algo revestido a outro, como que um activismo político num mundo que ensina a não se importar. Reparar é o que nos torna humanos, rainhas e reis de nós mesmos, não por comandar exércitos ou reinos, mas por termos a audácia de nos debruçar sobre a dor e a verdade do outro e acolhê-la como parte de nossa própria jornada.

Termino a reflexão de hoje com 7 “dicas” que seleccionei para si, que a propósito do que lhe falei, talvez possam ser uma espécie de “regras de ouro” essenciais se quiser exercer uma conexão mais profunda nos seus relacionamentos (pessoais ou profissionais):

  1. Antes de mais nada, quando o outro fala consigo, ouça totalmente. Tente compreender e só depois responda (sim, respeitando esta mesma ordem). Se você não entendeu algo, diga-o e pergunte novamente.
  2. Se o outro responder à sua pergunta, ou estiver a tentar dizer-lhe algo, não ocupe este tempo, na sua mente, a pensar na resposta que lhe vai dar ou a pensar em alguma próxima pergunta.
  3. Se você já tomou uma decisão sobre qual será a resposta, para quê perguntar? Alternativamente, pergunte, ouça e então decida.
  4. Chegará a um momento em que você se torna consciente de que parou de o ouvir. Ligue-se novamente. Se você acha que perdeu algo importante, peça, com gentileza, que a pessoa retome ao ponto.
  5. Não interrompa. Esta será porventura a mais difícil, hein??!
  6. Mantenha o contacto visual o máximo que puder (mas sem ser assustador ou invasivo) e reaja de acordo com sons de audição apropriados e reacções faciais.
  7. Qualifique o que você ouviu, por ex: “Ok, acho que te percebi, tu estás-me a dizer ‘isto’ e ‘isto’… entendi bem?”

Por mais que nos achemos profundos conhecedores sobre qualquer coisa, poderemos sempre surpreender-nos com novos olhares, novas leituras, novas repaginações, novas edições, corrigidas e aumentadas, pois cada um vê apenas o que a sua mente deixa, mesmo que o coração bata noutros sentidos.

Você só conseguirá ver aquilo que existe em si como regra, crença ou parâmetro e o que a sua autorização invisível lhe permite, e portanto, somos passíveis de aprender, completar informações, interpretações e adicionar novos ângulos, sempre… e diga lá se não acha (como eu acho) que isso é maravilhoso!?

Nós nunca estamos completamente preenchidos, acabados, fechados em nada e há constantemente a oportunidade da vida apresentar-nos novas possibilidades, alternativas infinitas de visões, sensações, experiências e clarividências. Revelando-se num fluxo de desenvolvimento pessoal, íntimo, ilimitado e agregador à constituição humana.

De pessoas bem-intencionadas que acreditam em soluções rápidas e fórmulas mágicas estão os mini cursos de discurso motivacional cheios. Não se trata aqui de defender a terapia ou algo semelhante, apesar de obviamente poder existir neste contexto uma preparação muito mais profunda e robusta para o (saber) exercer a sublime arte do “ver” e “escutar” o outro. Diria apenas que, no quotidiano mesmo, o que precisamos é de um mínimo de gentileza e cuidado nas nossas palavras, pois que na ânsia de acalmar e evitar que os outros fiquem presos nos seus sentimentos difíceis, muitas vezes buscamos suavizar a situação. Dizemos frases como “tudo passa”, “não penses nisso”, “não é tão grave”, “tenta ver por outro ângulo”, ou “pensamentos positivos atraem coisas boas”, sem perceber que, com isso, podemos estar a afastar alguém do nosso afecto.

Em vez disso, é mais valioso sentar-se, ver e escutar de verdade, e compreender as contradições e complexidades embutidas naquela dor ou crise. Usar uma resposta pronta ou um cliché pode apenas revelar o seu desconforto diante do sofrimento alheio. Podemos ir além da nossa própria inquietação com o desequilíbrio emocional do outro.

Em terra de egos, onde todos gritam pela própria atenção, poucos se atrevem a silenciar as suas vontades para ouvir o murmúrio do outro. Aqueles que o fazem são os verdadeiros reis, pois alcançam o que a maioria não vê: a majestade de ser humano, com todas as suas fraquezas, silêncios e gritos resgatados da alma.

Quem realmente vê, não só repara no outro e no mundo, mas repara a si mesmo, nas entrelinhas dos olhares que se cruzam e se encontram.


Sara Ferreira

Email: apsicologasara@gmail.com

Site: www.apsicologasara.com

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