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‘Não era para ser assim…’

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‘A culpa é minha!’

Prevista como crime público punível com até dez anos de prisão, a violência doméstica pode ser denunciada junto das autoridades (GNR, PSP e Polícia Judiciária), do Ministério Público, do Instituto de Medicina Legal ou de organizações como a APAV (Associação de Apoio à Vítima). Seja pela própria vítima ou por familiares e amigos – sendo que aqui é necessário algum bom senso e uma certa sensibilidade, para não ferir suscetibilidades da vítima em questão.

Mas quando é que sabemos se devemos fazer queixa? Como é que temos a certeza de que o que estamos a viver é um caso de polícia? Para o psicanalista António Coimbra de Matos, “basta um estalo, uma agressão verbal, uma falta de respeito que ultrapasse os limites.” Só que à sensação de medo das vítimas junta-se geralmente uma culpa que lhes parece quase natural. Porque quem agride tem essa capacidade, de fazer sentir culpa a quem é agredido.

“Há muitos aspetos ligados ao facto de uma pessoa que sofre de violência doméstica se manter nesse relacionamento. Um deles é o medo e o outro é a culpa. Vivemos numa sociedade em que a culpa domina muito, daí que as pessoas, principalmente as mulheres, tenham uma certa tendência para se culparem por tudo. Por exemplo: ‘O meu marido trata-me mal, mas eu também me esqueci de qualquer coisa…’ Há uma noção muito forte de culpa na cultura em Portugal.

“Até ao nível da educação com os nossos filhos, por exemplo, também a tendência é para educar através da culpa. Para eles serem obedientes, dizemos qualquer coisa como: ‘Não tens o presente que queres, porque a culpa é tua, não te portas bem…’ etc. E numa relação também se verifica muito isso: quem tem mais poder, geralmente o homem, induz culpa na mulher.”

“E depois, ao nível da culpa, há dois tipos: a culpa normal e lógica, e depois a culpa ilógica, que é patológica e que é induzida para se respeitar o seu superior, como acontece nos casos de violência doméstica”, explica o psicanalista António Coimbra de Matos.

Palavras que fazem todo o sentido para Carlota: “Durante muito tempo e em muitas agressões físicas, ele fez-me acreditar que eu merecia aquilo… Dava-me diversos motivos para que eu acreditasse que devia mesmo levar aquela sova! E eu acreditava… Cheguei a pedir-lhe muitas vezes desculpa depois de ter sofrido inúmeras agressões”, explica Carlota.

Habituadas a padrões de relacionamento pouco harmoniosos, estas mulheres recorrem a ajuda especializada quando já se encontram num estado de ansiedade e fragilidade grande e quando a escalada de violência é significativa. A culpa da ajuda tardia é, na verdade, do agressor, explica o responsável da APAV: “Eles deturpam a identidade delas… Muitos de nós temos a sorte de acertar na pessoa com quem dividimos a vida, mas outros não…”

“E a nós, APAV, cabe-nos o papel de alertar estas mulheres para o mal que estes homens lhes estão a fazer, tentar dizer-lhes que nunca se devem sentir culpadas! Normalmente, são mulheres já fragilizadas e que embarcam nesse relacionamento porque é o padrão de relacionamento que têm.”

Existirá uma tendência para este tipo de relacionamento? Na opinião do psicanalista Coimbra de Matos, tudo se aprende logo na infância. “O respeito pelos outros e por nós próprios é aprendido logo na infância. Por exemplo, se a criança que faz uma coisa mal feita recebe um tabefe, vai dar um tabefe mais tarde a alguém, vai descarregar esse tabefe em alguém… E isso causa medo e a criança sente esse ambiente de medo…”

“Acho que o mais importante, ao nível da educação e para que se possa contornar um pouco estas questões da violência, é incutir logo nas crianças respeito pelos outros e por elas próprias. As crianças devem ser tratadas com o respeito que merecem, para que possam tratar os outros bem e verem, elas próprias, que merecem esse respeito. Só assim se tornarão adultos saudáveis e cientes de que devem respeitar os outros e de que devem ser respeitados, só assim terão essa noção.”

Uma opinião partilhada pelo responsável da APAV, Daniel Cotrim: “De facto, a prevenção tem de ser feita cada vez mais cedo! E não é dizer apenas que a violência doméstica é má, é antes incentivar o respeito entre as pessoas e por nós próprios, incentivar o debate sobre as questões de igualdade de género, o cultivo de relacionamentos saudáveis, etc. A prevenção é fundamental e nós defendemos que a prevenção deve ser feita cada vez mais cedo. Na fase da adolescência é muito importante!”

Para o psicanalista Coimbra de Matos, é, por vezes, a própria sociedade que acaba por fomentar um pouco a agressividade. “Não fomenta totalmente, mas atualmente vivemos um contexto de conflito. É um problema político-social, este da competitividade e da violência, a ideia de que se consegue tudo através do conflito… Podemos ver isso com todas as guerras que estão a acontecer. Mas depois também há o problema da autoridade e do respeito que tem de se ter pela autoridade.”

“Mesmo com as crianças joga-se muito com isso… Incute-se o medo pela pessoa que representa a autoridade – o pai ou a mãe – para que os miúdos obedeçam. Os pais acreditam que é preciso impor limites, isso é falso! O que é preciso é mostrar-lhes que a realidade tem limites, o que é outra coisa. Por exemplo, se a criança bate com a cabeça na parede, tem de se mostrar que vai ficar com a cabeça magoada, ou se insulta o pai, se calhar o pai vai ficar chateado e não vai querer jogar mais à bola com ele…”

“É importante mostrar que determinadas escolhas das crianças vão ter consequências nas suas vidas… Muitos pediatras dizem que o bebé precisa de duas coisas: amor e disciplina. Eu não estou nada de acordo com a questão da disciplina, aquilo de que o bebé precisa é de ter um ambiente disciplinado e organizado, porque se o ambiente for organizado, ele próprio se organiza, agora se o ambiente for desorganizado, ele tem tendência para se desorganizar.

Há uma autora que se chama Alice Miller, que escreve e fala sobre isto chamando-lhe a educação negra, a educação pela autoridade e pelo castigo, defendendo que a educação deve ser pela compreensão.” Nas relações pesudoamorosas, o especialista acredita que tudo se resume também à questão da autoridade: “O agressor incute na vítima a sensação de medo pela autoridade, que é ele.”

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