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O amante secreto que todas as mulheres têm

Por Sara Ferreira, psicóloga

É um cliché dizer-se que as mulheres, por vezes, parecem ser um pouco mais propensas a viver com um sentido de imaginação mais apurado e até idealizado sobre a realidade.

Foram treinadas para adorar o universo dos sonhos, das cores, da fantasia, do imaginário, dos lugares mágicos e deliciam-se com tudo aquilo que remeta a um mundo de fadas cheias de purpurina e príncipes encantados.

O mesmo acontece com os relacionamentos amorosos, onde – mesmo que casada, namorada, junta, amantizada, enrolada – todas as mulheres têm um amante. Sim, um amante! Mesmo que imaginário, ainda assim, um amante.

Suponhamos que Amanda, simplesmente uma mulher, está casada com o Damásio, um homem honesto, trabalhador, dedicado à família e aos filhos, mas não muito letrado e às vezes bastante rústico e até bruto (como, para muitos, “é suposto ser”). Amanda, que é casada com ele há 30 anos tem um amante há 29 anos e 7 meses, o momento em que Damásio se mostrou um pouco limitado intelectualmente, mas – naquele preciso momento – a Amanda pensou: “bem que o Damásio poderia estudar mais… pode ser que até vá.” Aí nasceu o seu amante.

A Amanda passaria desde aí a fantasiar com um Damásio super-intelectualizado, culto, interessante e ávido de leituras e conversas diversas (o seu amante), mas, na “vida real” a relacionar-se com um marido chato e meio bronco. Amanda passara 20 e muitos anos a sonhar com o dia em que pudesse passear-se apaixonadamente com o Damásio em feiras do livro e bibliotecas, nutrindo a esperança (essa danada) de que um dia ele haveria de tomar gosto pela arte e literatura. O casamento, porém, haveria de ser marcado por um dia-a-dia enfadonho e deletério e Amanda nunca mais olhou para o marido real com os mesmos olhos com que olhava para o amante secreto, esse entusiasmante amante que ela secretamente manteve por décadas chamado idealização.

Este tipo de amante é muito comum e obviamente não é exclusivo das mulheres (foi só uma provocação). Mas o ponto é este: grande parte dos relacionamentos amorosos sofre de algum tipo de mal-estar silencioso (que ninguém gosta de confessar) mas que está sempre presente como um cocó lançado por pombinhos: a esperança de que “um dia” ele/ela vai (magicamente) mudar. Relacionamo-nos mais com a idealização que fazemos da pessoa do que com a pessoa em si.

Poucas coisas são tão efectivas para manter uma mulher presa a um relacionamento que provavelmente nunca vai acontecer do que a esperança, a confusão, porque ela vai ficar à espera da construção de algo que não existe, nunca existiu (e o mais certo é que não existirá), simulando a realidade com base em idealizações, fantasias, projecções que ela guarda para si. Quando ela se apercebe, já montou toda uma confabulação em torno da pessoa, e mesmo que os dados concretos da realidade mostrem o contrário, ela espera que isso mude, como quem espera pelo seu amante na calada da noite. Ela cria teorias, desvaloriza os sinais de desinteresse ou desinvestimento dele na relação e apega-se às migalhas afectivas.

O problema é que quando as idealizações não batem certo com a realidade, e da parte da outra pessoa não há um dizer claro e honesto no sentido de “olha, daqui o que tu podes esperar é x e não y”, fica-se estagnada(o), afinal a relação vem cheia de sinais incoerentes. Com sinceridade e ajuste de expectativas, numa base de acerto de real, às claras, adulto e maduro – mútuo –, a pessoa poderia ter trabalhado esse sentimento e, aos poucos, ir-se desapegando das ilusões, seguindo em frente para ir à procura do que mais desejaria (mas para isso dava jeito saber o que se deseja, de facto, não é?…).

Será que vale a pena estar-se em relações aonde o que é imaginado e o que é experienciado não conjugam, são confusos ou alternam entre o que você quer e o que não quer (e isto vale tanto para mulheres como para homens)?

Complexos e náufragos voluntários como somos, navegamos sobre duas realidades: aquela que os sentidos alcançam (que nos costuma entediar) e a outra constituída por uma versão fantástica (e mais emocionante) da primeira. Escusado será dizer qual das duas nos leva a melhor, não é verdade?

Inúmeras brigas entre casais acontecem porque a realidade mais imediata frustrou ou gorou completamente as fantasias. “Ele deveria falar mais e ela deveria falar menos”…e por aí adiante. Enfim, que cada um(a) tente adequar o seu par na respectiva fantasia.

Na mitologia clássica, Pandora foi a primeira mulher, modelada em argila por ordem de Zeus (o mal-humorado deus dos deuses gregos) e a “caixa de Pandora” foi um presente dos deuses, na qual colocaram todos os males e as desgraças do mundo (um verdadeiro presente de grego), como a guerra, a fome, a discórdia, as doenças. Interessante notar que a esperança foi colocada como a última desgraça da caixa de Pandora…Curioso, não?

Sim, porque se por um lado a esperança é um dom (a esperança de poder mudar a vida, de transformar a realidade do dia-a-dia, muitas vezes dura) ela também é uma dor, uma calamidade (porque podemos ficar eternamente presos a ela, sem de facto conseguir mudar a vida e transformar a realidade do dia-a-dia, muitas vezes dura). Ou seja, se a esperança é a última a morrer, também é ela que nos pode “matar” ou ser por ela que deixamos de efectivamente viver…É um presente quando a podemos ter… porém, não raras vezes, um presente envenenado que nos paralisa mais do que o que nos poderia fazer mover.

Os mitos também influenciam a nossa vida quotidiana e, nestes casos, a idealização, a romantização do que nos impede de ver o que é, a expectativa e a esperança expõem tanto as nossas qualidades como as nossas fraquezas.

Então, se você não deseja ter o mesmo fim malfadado de Pandora (diga-se de passagem, uma ‘sina’ comum a muitas de nós, mulheres, retratadas, como sabemos – e desde há muito – como a origem do mal no mundo…) não prejudique o “seu” mundo.

Relacionar-se com o “potencial” de uma pessoa não é justo para ninguém. Toda a gente merece ser amada apenas pelo que é. E você, querida leitora, merece um parceiro, não um “projecto” de quem, supostamente, ele se poderia “tornar”.

Talvez seja o momento de deixar a idealização (esse seu amante secreto) bem longe do armário da sua imaginação e começar a embarcar numa jornada de construção emocional significativa que tenha como base a pessoa que está ao seu lado, de facto.

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