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Só faz guerra quem não sabe fazer amor

Um ano novo entrou. A Terra está a modelar uma beleza austera, como o processo de queda, que é crucial para se reconectar com o que é mais verdadeiro.

No outro dia permiti-me chorar muito bem. Foi tão purificador e libertador. Abri a janela mesmo sendo um dia frio. O ar fresco soube tão bem. Quase imediatamente, depois de abrir um grito alto, um pássaro cantou perto da minha janela e ecoou pelo ar.

Isso lembrou-me que, embora estejamos todos a uma distância física, estamos todos conectados nos planos da existência, à medida que cada um de nós faz o seu trabalho interno, à medida que nos desintoxicamos das nossas feridas, à medida que construímos novas estruturas para apoiar um novo paradigma dentro de nós.

Fazer guerra é fácil; mais difícil é fazer amor. É a habilidade de construir pontes em vez de muros, de buscar soluções em vez de conflitos. Aqueles que só conhecem a guerra estão a perder seriamente a oportunidade de experimentar uma conexão mais profunda e significativa com o mundo ao seu redor (e dentro de si).

Tempos estes assombrosos e letais, sacudidos pelas guerras, pela evidência absurda da nossa impotência e crescente alheamento. Guerra ou essa coisa sub-humana… a maior barbárie à face da Terra. O trauma mais adverso e repugnante, pois nela estão encapsulados inúmeros outros traumas. Parece que sem destruir, dominar e impor, uma larga parte da “nossa” humanidade “hiperinteligente” e intelectocoisos não consegue montar alianças nem constituir identidade. Um “jeitinho” de ser daquele tipo de existências que precisam “provar-se” esbugalhado o Outro.

Lembrei-me novamente de como é revolucionário uma pessoa sentir plenamente a verdade dos seus sentimentos. Permitir-nos absorver a devastação do nosso mundo, não chafurdar no desespero, mas (re)clamar para que algo novo possa surgir.

Os paradigmas que apoiarão uma nova Terra estão, acredito, a ser construídos dentro de nós.

A guerra, essa dança macabra de destruição, muitas vezes é a escolha mais fácil daqueles que não têm a menor ideia de como lidar com algo tão simples e complexo quanto o amor. Não me refiro ao amor romântico e idealizado dos contos de fadas, mas sim à capacidade de respeitar, compreender e aceitar as nuances que tornam cada ser humano único.

A verdade é que, quando confrontados com a diferença, muitos preferem empunhar armas em vez de estender a mão. A ignorância, a intolerância e a falta de vontade para entender o outro são as munições de uma guerra que poderia ser evitada se as pessoas simplesmente soubessem fazer amor.

A guerra, muitas vezes, é um grito desesperado daqueles que não conseguem lidar com a complexidade das emoções humanas. É uma expressão trágica da incapacidade de ver para além das diferenças superficiais e reconhecer a humanidade comum que nos une.

Peste, guerra, fome, etnocentrismo, gente a matar-se por sentimentos de posse, inveja, fanatismo, líderes histriónicos, criminalidade ou preconceito. O ano é 2024 mas, em alguns aspectos, parece qualquer outra altura antes da invenção da escrita.

Vigio e regulo os meus pensamentos automáticos: “nada de novo debaixo do sol…”? Pois é, a lucidez, a consciência têm sido artigos de luxo na humanidade e, quando aparecem, o mundo todo deve regozijar-se. O mundo pede paz, o mundo pede saúde mental. E, sinceramente, não me venham com ilusões: enquanto não houver uma cultura da Saúde Mental no mundo inteiro, tudo ainda é só pré-história.

As vidas humanas não são mercadorias bovinas, e o lucro, a estratégia e o poder não podem ser os únicos balizadores das relações sociais. E aqui estamos nós, mais uma vez, a inventar guerras, a proliferar traumas e chacinas porque ainda somos um buraco sem fundo de sombras e de conflitos psicológicos pelo mundo afora.

É tempo de declararmos Guerra ao adoecimento emocional da humanidade.

O amor é um acto de entrega, de aceitação e de construção conjunta. Ele requer paciência, compaixão e a capacidade de se colocar no lugar do outro. Na ausência desses elementos, a guerra torna-se uma resposta bruta e mal-educada, a negação da Polis, uma fuga da complexidade do entendimento mútuo.

As guerras políticas – aliás, os próprios fundamentos ideológicos e sociais em que elas germinam – têm-me feito questionar muita coisa. Tenho pensado numa frase que, por coincidência ou não, surgiu várias vezes diante dos meus olhos nos últimos dias: “A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.” (Mia Couto).

Eu diria inclusive: a guerra nunca pariu um filho. Diz-me como gostas de te afirmar que eu dir-te-ei qual é o teu vazio.

Aquilo que a Vida, a natureza e a paz constroem, a guerra aniquila, conspurca, destrói, e a quem caberá a razão entre mortos, feridos e destruídos? Nunca se vence uma guerra: quando eclode, todos já perdemos.

Sim, as guerras políticas, económicas ou seja lá o que forem já nos cansam. Porque sim, já bastam as nossas guerras internas, subjectivas, as que acontecem lá em baixo, onde “o espírito se encontra com o osso”, como disse um belo autor. E estamos todos na mesma viagem, num grande barco, que veleja pela força do coração.

Todas as guerras são uma declaração da estupidez humana, não importa que país esteja à frente dela. No entanto, e ao mesmo tempo, podemos assistir aos estrondosos apelos à Paz pelo mundo inteiro, às incontáveis manifestações de apoio e solidariedade, ao repúdio cabal deste tipo de barbárie, permite-nos constatar também o material nobre de que são feitos os seres humanos, haja pois esperança em nós (humanidade).

Em que tempo, em que época, em que ano desde que há registos, houve tanto altruísmo, tanto acolhimento, tanto respeito mútuo entre os povos e tanta solidariedade à escala global?

Isto é viver com a dualidade da nossa humanidade. É suada, suja e fria. É pura, boa e quente.

E também tenho visto como nós conseguimos reconhecer a guerra física, mas não vemos os níveis mais subtis de guerra e opressão, quando é aí que tudo começa. Para chegar à paz é preciso ver para além das dinâmicas que geram a guerra, para que as possamos neutralizar e transcender. Isto é um enorme desafio para a humanidade. Precisamos amadurecer e deixar para trás os nossos idealismos e ingenuidades.

E já agora, precisamos parar de usar o adjectivo “sensível” ou “emocional” como uma crítica ou insulto se quisermos que a sensibilidade seja valorizada e reconhecida pelo que ela é: uma qualidade essencial para uma sociedade mais saudável, mais compassiva e mais humana.

Na verdade, o facto é que, apesar das sondas em Marte e dos smartphones na Terra, ainda estamos na pré-história, na infância da humanidade, enquanto ela não crescer para conseguir ver (e não mais desver) as dimensões do Ser, do Sentir e do Pensar, verídicos. Enquanto não amadurecer para aquilo que verdadeiramente pode ancorar e sustentar a capacidade de criarmos a mantermos paz: a Saúde Mental.

São tempos de muitos excessos, de muitos vazios, de muitos radicalismos e de muitas velocidades que desejam esconder uma singela verdade: a verdade de que nos negamos a combater as nossas próprias sombras, preferindo, ao invés disso, projectá-las nas outras pessoas e denunciá-las como terrores alheios.

Estamos a atravessar este contacto com a sombra. É difícil, é perturbador, queremos saber quando acaba.

A sombra não é um monstro exterior. É a sombra que resulta da forma como cada um(a) de nós tem vivido e como grande parte da humanidade tem vivido.

Não poderemos seguir sem compreendermos isto e operarmos mudanças profundas. O desafio é grande.

É hora de abandonar as armas da ignorância e abraçar a complexidade e a beleza do amor. Afinal, num mundo tão carente de compreensão, talvez o verdadeiro poder esteja na capacidade de amar, não na habilidade de destruir.

A verdadeira revolução não ocorre nos campos de batalha, mas nos corações que ousam dialogar, compreender, aceitar, partilhar e amar. Enquanto a guerra persistir como resposta, é um sinal inequívoco de que a humanidade está a perder a batalha mais crucial: a capacidade de fazer amor, construir pontes e transcender as barreiras que nos separam.

Que cada um(a) de nós encontre uma forma de, pela força da vulnerabilidade, da gentileza, da beleza e da determinação, manifestar a sua essência e iluminar o mundo nestes tempos de sérios desafios.


Sara Ferreira

Email: apsicologasara@gmail.com

Site: www.apsicologasara.com

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