

Liliana e Raquel sempre quiseram ser mães. Porém, só quando os tratamentos de procriação medicamente assistida (PMA) passaram a ser permitidos para casais homossexuais é que o casal pôde deixar de sonhar e acreditar que seria possível realizar este desejo. Depois de 2 anos de tentativas, o “final feliz” chegou. Hoje, através da página de Instagram @1diario2maes, expõem a realidade de uma família homoafetiva e ajudam outros casais através da sua experiência.
Existem quatro tipos de tratamentos PMA: a inseminação intrauterina, a fertilização in vitro, a técnica da maternidade partilhada ou ROPA (recuperação de óvulos da parceira) e, por fim, a dupla doação de óvulos e espermatozóides, ou a doação de embrião. Estes são cada vez mais procurados, apesar dos seus custos elevados, fruto da sua complexidade, que envolvem tecnologias sofisticadas e de ponta e que requerem uma enorme especialização por parte dos profissionais e clínicas que prestam estes serviços.
À LuxWoman, o casal contou a sua experiência durante o tratamento, a gravidez e o pós-parto. Além disso, partilhou como lida com o preconceito e o que tem, ainda, de mudar. Para responder às questões médicas e às dúvidas que surgem sobre este tema, recorremos a Isabel Torgal, Diretora Clínica da Ferticentro e Médica especialista em Ginecologia/Obstetrícia com subespecialidade em Medicina da Reprodução.
Liliana e Raquel
“Somos uma família como outra qualquer, temos qualidades, defeitos, fragilidades, mas amamo-nos uns aos outros e isso por si só deveria ser suficiente”
Sempre sonharam em ser mães?
Desde muito cedo sonhávamos como seria bom sermos mães, mas sempre pensámos que não passaria de um sonho. Os tratamentos PMA para casais de mulheres não eram permitidos em Portugal na época, o que dificultava ainda mais todo o processo.
Que tratamento realizaram?
No total das nossas 8 tentativas, 3 punções e de 13 embriões transferidos na totalidade, alternámos entre o processo de Fertilização In Vitro (FIV) e a maternidade partilhada.
Quais foram os vossos maiores receios, antes da realização do tratamento?
Receio pelo facto de sermos duas mães, no geral. Desconhecíamos a parte burocrática que acabou por vir a mostrar-se simples. O processo do tratamento em si também era um pouco desconhecido para nós, entre o tempo que demorava desde a primeira consulta até à gravidez efetiva, em que consistia, se seria ou não indolor. Na realidade, a cada passo que dávamos, surgia um novo receio.
Sentiram-se apoiadas na vossa escolha de serem mães pelas pessoas ao vosso redor?
No geral, sim. Claro que a sociedade acabou por demonstrar que aceita um casal homoafetivo desde que ele se mantenha no anonimato. Podemos afirmar que aumentámos muito o apoio e carinho que recebemos por parte da família e dos amigos. No entanto, principalmente ao expormos a realidade de uma família homoafetiva como a nossa na nossa página de Instagram @1diario2maes, percebemos que a sociedade não está, ainda, preparada para ver uma família onde apenas reside o amor. Seja ela composta por que elementos for. As pessoas estão tão formatadas para aquilo a que chamam família tradicional, que rejeitam toda a família que seja diferente disso. Felizmente, na balança, temos mais pessoas a apoiar-nos do que o contrário. Somos uma família onde reside o amor, e quem diz que isso é errado, não conhece claramente o amor de perto.
Como foi o tratamento? Foi um processo simples?
Não. De todo! Quando iniciámos o tratamento para sermos mães tudo indicava que seria um processo rápido. Tínhamos vários fatores que abonavam a nosso favor. A idade (tínhamos na altura 28 e 29 anos), a ausência de histórico de infertilidade, e todos os exames nos diziam que estava tudo certo para avançar. Na realidade, faltava-nos apenas o gâmeta masculino e esse fator seria rapidamente ultrapassado recorrendo a um dador de esperma. Infelizmente, acabámos por cair na percentagem de casais com infertilidade sem causa diagnosticada, mas por outro lado tivemos a felicidade de estar em boas mãos, pois a equipa da Ferticentro, em Coimbra, foi de facto incansável. Fizemos 3 punções, transferimos vários embriões, com falhas de implantação, alguns abortos e até uma gravidez ectópica! O positivo tardou em chegar. Felizmente, ao final de 2 anos de tentativas, chegou o nosso final feliz, que hoje se chama Martim. Ele é a prova de que o final feliz pode tardar, mas, na maior parte dos casos, ele acaba por chegar – é preciso muita persistência e, naturalmente, encontrar a clínica e os médicos certos. São tratamentos muito desgastantes, a todos os níveis. Financeiramente e emocionalmente, quem se submete a um tratamento de fertilidade, nunca chegará ao final com a mesma carga que iniciou. Como diz a velha frase tão conhecida “só quem passa”, e é verdade. Quem não passa só imagina. E mesmo assim, nunca entenderá por completo.
Enquanto família, alguma vez sentiram algum tipo de preconceito?
Sentimos sim. Felizmente, casos muito específicos e isolados, mas, curiosamente, a maior parte deles provenientes de entidades de serviço público e de saúde. Já várias vezes nos questionaram quem era a mãe verdadeira e a outra. Também já nos questionaram como era o pai do Martim, apesar de insistirmos em fazer perceber que não existe pai aqui, mas sim um dador de esperma. Sentimos uma certa resistência e falta de flexibilidade e adaptação a novos e diferentes modelos familiares. Que sempre existiram.
E em relação ao vosso filho, sentiram a necessidade de abordar esta questão antes de este entrar na escola?
Totalmente! Infelizmente, sabemos que a sociedade ainda não está preparada para este modelo familiar. E quando dizemos preparada, dizemos que, muitas vezes, existe falta de diálogo entre pais e filhos na tentativa de lhes tentar explicar que, ao longo da vida, poderão cruzar-se com meninos ou meninas que têm duas mães, dois pais, apenas mãe, apenas pai, apenas avós ou apenas tios. E que todas as famílias são válidas e merecem respeito. Essa conversa não existe em grande parte das casas. O que permite que, no futuro, situações de bullying pela diferença possam existir. Por esse motivo, queremos e tudo fazemos para que o Martim tenha bases para que se possa defender ou não ofender quando ouvir certos comentários. Queremos que ele perceba que amor é amor, seja ele de que forma for. E é isso que tentamos também normalizar na nossa página de Instagram. Mostrar a nossa família, normalizá-la, e permitir que nos vejam com o coração e não apenas com os olhos. Somos uma família como outra qualquer, temos qualidades, defeitos, fragilidades, mas amamo-nos uns aos outros e isso por si só deveria ser suficiente. Infelizmente, ainda há situações em que não é.
Na vossa opinião, o que precisa de ser feito para que famílias como a vossa não se sintam uma “exceção à regra”?
Bem, na nossa opinião, a normalização de famílias como a nossa é fundamental. A consciencialização de que a nossa família existe, e como a nossa tantas outras, e que não há nada de errado com isso. Somos família e ponto final. Existe amor e isso deveria ser o suficiente. Sentimos que ainda existe pouca informação, no caso de duas mães, ainda existe a pergunta “duas mães? Isso não é possível!”, e quem diz duas mães diz todos e qualquer modelo familiar que não seja o tradicional.
O sistema de saúde, o sistema de ensino, o sistema de serviços públicos, como finanças, segurança social e afins, não estão preparados ainda para famílias como as nossas…
Não se justifica em pleno ano 2024 e com um crescente aumento de famílias homoparentais, continuarem a insistir em formulários que contêm todos o nome de pai e nome de mãe e sermos obrigados a riscar um deles. Quando nem na certidão de nascimento isso acontece, porque tem “filiação”. Não se justifica no sistema de saúde, e quando se fala em relacionamento, ainda se partir do princípio que é um relacionamento heterossexual. Não há informação. Na educação sexual que se vai gradualmente falando nas escolas, ensinamos como se proteger uma pessoa numa relação heterossexual, nunca homossexual. As doenças sexualmente transmissíveis não existem só em relações heterossexuais. A normalização de famílias de vários modelos, em todas as áreas da nossa vida, tal como acontece com a heterossexualidade. Precisamos de representatividade e normalização. E que se acabem com tantas burocracias que são pura resistência. Já não estamos como estávamos há uns anos atrás, e continuarmos a rejeitar modelos que sejam diferentes dos nossos ou ignorar a sua existência só traz desconhecimento e com ele discriminação, muitas vezes de forma não intencional.
Isabel Torgal
“Atualmente, temos uma das leis mais progressistas da Europa. Portugal é mesmo visto como um excelente exemplo a nível internacional nesta área da Medicina”
Que tipos de tratamentos existem?
Há, essencialmente, quatro tipos de tratamentos: a inseminação intrauterina feita por um dos elementos do casal; a fertilização in vitro, em que apenas participa um dos elementos do casal; a técnica da maternidade partilhada ou ROPA (recuperação de óvulos da parceira), em que um dos elementos do casal dá os óvulos, que são fertilizados com o esperma de um dador, sendo os embriões obtidos transferidos para o outro elemento do casal; e, por fim, existe ainda a dupla doação de óvulos e espermatozóides, ou a doação de embrião, que são as únicas técnicas possíveis nas situações em que os ovários dos elementos do casal já não funcionam adequadamente.
São estes processos demorados?
De um modo geral, os tratamentos de Procriação Medicamente Assistida procuram mimetizar um ciclo menstrual natural, e duram cerca de 3 semanas, entre o primeiro dia da menstruação e o dia da inseminação ou da transferência de embriões. O teste de gravidez é feito cerca de 15 dias depois. Contudo, por vezes é necessário fazer determinados procedimentos ou intervenções para preparar o processo, antes deste se iniciar – e essas podem demorar um pouco mais, existindo igualmente situações em que temos de recorrer a protocolos mais longos. Cada caso é um caso e há alguma variabilidade entre pacientes, mas podemos afirmar, de uma forma global, que estes tratamentos não são processos muito demorados.
Como funcionam?
Nos tratamentos de inseminação intrauterina e de fertilização in vitro, incluindo os de maternidade partilhada, há sempre uma fase prévia de estimulação dos ovários da mulher que vai doar os óvulos, para que estes produzam, de uma forma controlada, um número de óvulos superior ao que produziram em circunstâncias fisiológicas. No caso da inseminação intrauterina, quando temos um ou dois folículos ováricos com características e dimensões compatíveis com a existência de um óvulo maduro no seu interior, e o endométrio com boas características, desencadeamos a ovulação com um medicamento específico e depois transferimos uma amostra preparada e concentrada de esperma de dador para o útero, no dia certo e à hora certa. Nos tratamentos de fertilização in vitro, o número de óvulos que tentamos obter é superior, sendo estes recolhidos diretamente a partir dos ovários num procedimento que decorre sob sedação e que dura cerca de 20 minutos. Os óvulos recuperados são depois fertilizados em laboratório com os espermatozóides do dador, sendo os embriões obtidos colocados em cultura até ao quinto ou sexto dia de desenvolvimento. Nessa altura serão transferidos para o útero da mulher que passou pelo processo de estimulação (no caso dos tratamentos de fertilização in vitro clássica) ou para o útero da companheira (no caso dos tratamentos de maternidade partilhada/ROPA), que foi previamente preparado para a transferência.
Nos tratamentos com dupla doação de óvulos e espermatozóides, os óvulos da dadora (uma mulher voluntária, jovem e saudável) são fertilizados com os espermatozóides do dador e os embriões obtidos são transferidos para o útero do elemento do casal que pretende engravidar.
No caso dos tratamentos dos quais resultam mais embriões do que os que vão ser transferidos para o útero, é possível que a transferência embrionária seguinte seja feita para o outro elemento do casal – esta é uma decisão que naturalmente tem uma base médica, mas que, no essencial, depende sobretudo da vontade do casal.
Os custos são muito elevados?
Infelizmente sim, estes são tratamentos complexos, que envolvem tecnologias sofisticadas e de ponta e que requerem uma enorme especialização por parte dos profissionais e clínicas que prestam estes serviços, pelo que os custos são naturalmente elevados.
Um tratamento de inseminação intrauterina custa cerca de €900, enquanto um ciclo de fertilização in vitro tem um custo de cerca de €4950. A estes valores temos de acrescentar os custos relacionados com a palheta de esperma de dador (cerca de €550), bem como os custos com as análises clínicas e medicação (bastante variáveis de paciente para paciente).
Há bastante procura?
Sim, estes são tratamentos que vieram permitir a estes casais a concretização do desejo de terem filhos. Antigamente as mulheres portuguesas sem companheiro masculino (solteiras ou lésbicas) tinham de fazer os seus tratamentos em Espanha. Atualmente, temos uma das leis mais progressistas da Europa. Portugal é mesmo visto como um excelente exemplo a nível internacional nesta área da Medicina.