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Uma mulher cansada não se faz feliz

Enquanto Fernando Pessoa afirmava nunca ter conhecido alguém que tivesse levado porrada, eu, por minha vez, não conheço uma mulher relaxada.

Hoje em dia, já é mais óbvio que comer tostas de abacate antes de dormir, tirar sonecas épicas e manter os nervos sob controlo são as chaves para uma vida saudável. Mas, cá entre nós, transformar essas pérolas de sabedoria científica em hábitos diários é mais difícil do que fazer malabares com flamingos. Afinal, quem tem tempo para ser saudável quando a vida está ocupada demais a ofertar-nos em abundância falta de tempo?

Na constante dança do malabarismo que é a vida moderna, as mulheres frequentemente encontram-se na corda bamba do multitasking, equilibrando (tentando!) inúmeras responsabilidades. A sociedade treinou-nos para sermos verdadeiras acrobatas, mas a pergunta que paira é: a que custo?

O descanso é um tabu para as mulheres. Do direito ao descanso, então, nem se fala. Geralmente é totalmente negligenciado, e isso não é por acaso.

Para muitos, talvez pareça algo natural, mas pode ter a certeza de que não é normal sentir-se tão cansada como as mulheres se sentem. Tudo isso é resultado de anos de estereótipos e construções equivocadas que impõem ao género feminino um papel exaustivo.

Uma mulher exausta não se faz feliz, nem tampouco semeia no peito o sopro primaveril da revolução.

Sim, podemos enaltecer as mulheres, as mães que se esforçam para fazer o melhor possível para os seus filhos e família, mas sem colocar sob a sua responsabilidade todos os papéis.

Temos que parar de romantizar a mãe / mulher guerreira. Não é guerreira, é esgotada, esfarrapada, cansada e, por vezes, perdida. Não é um elogio, é uma catástrofe mesmo.

O discurso que enfatiza a luta, a dedicação eterna para conquistar os objectivos é cruel porque para determinadas pessoas, a única opção é ser forte. Mas não deveria ser assim. As mulheres desempenham vários papéis impostos pela sociedade e ainda têm a sua humanidade negada, pois são consideradas (mas nem por isso devidamente valorizadas) como heroínas incansáveis.

Descansar tornou-se mais uma luta. Não podemos esperar o grande dia que a vida estará resolvida (nunca estará) para então depois conseguirmos descansar. Precisamos achar o nosso descanso nas brechas. Precisamos descansar agora mesmo!

As mulheres são as mais atingidas pela falta de tempo que impossibilita o descanso. Segundo dados de 2022 da consultoria McKinsey, nós somos mais susceptíveis a sofrer com a síndrome de burnout nos ambientes de trabalho. Além disso, dedicamos 73% mais tempo que os homens às tarefas do cuidado. E para quem cospe aos 4 ventos que evoluímos com o tempo, engasguem-se com esta informação: as mães ocidentais dedicam o dobro de horas aos filhos em relação à década de 1960 (repare, quando menos mães trabalhavam fora de casa).

Pode afirmar-se sem exagero que a tradicional ‘tripla jornada’ feminina foi substituída pela noção de que as mulheres agora enfrentam uma jornada de trabalho interminável. Nessa realidade, as responsabilidades domésticas, o cuidado com a família e o trabalho remunerado estão entrelaçados pela constante carga mental de gerir todos estes aspectos. Essa maratona de responsabilidades só termina quando a mulher consegue, contra todas as probabilidades, fazer da cama o seu sepulcro final de mais um dia e entrar para o Olimpo do sono dos combatentes.

Portugal é o quinto país da União Europeia com maior impacto da pandemia no mercado de trabalho, tendo sido as mulheres as mais penalizadas. A pandemia de Covid-19 aumentou a desigualdade entre homens e mulheres, tanto no trabalho como em casa, tal como mostra um recente estudo do Instituto Europeu da Igualdade de Género. Para além disso, a sobrecarga psicológica afectou mais as mulheres na pandemia, de acordo com outro estudo recente do ISCTE. Já a OMS também alertou para os dados reveladores de que os índices de perturbação mental (ansiedade, depressão, entre outros) que subiram a galope durante a pandemia afectam mais a população feminina. E curiosamente (só que talvez não) cresce no nosso país o abandono precoce do emprego para cuidar de doentes, num fenómeno que (adivinhe!) atinge sobretudo as mulheres e que resulta de custos directos e indirectos elevados devido à falta de verbas para aplicar planos de saúde mental.

Segundo a McKinsey, 42% das mulheres relataram ter sofrido burnout em 2021 – contra 32% dos homens. E 1 em cada 3 pensaram em trocar o eu emprego por outro menos ‘stressante’. Um aumento relevante, já que antes da pandemia este número era 1 em cada 4.

E aqui vale uma análise presente no relatório. A exaustão das mulheres não é uma coincidência ou um acidente de percurso: é um projecto fundamental para a manutenção da actual ordem das coisas.

Os corpos femininos são vistos como um recurso natural a ser explorado mas, tal como a natureza, estamos no limite.

Resultado? Se nós achámos que para ganhar o direito ao trabalho foi preciso um motim, parece que agora é preciso também uma insurreição para conquistar tempo livre e horas de descanso.

Mas o cansaço não faz distinção – atinge-nos todos como um abraço colectivo da exaustão.

A mulher média hoje ainda parece orgulhar-se de ser capaz de dar e fazer “tudo”, muitas vezes desprezando o seu descanso e o relaxamento, ou usando a pseudo crença de que se ela não está a “trabalhar” então ela está a “fazer nada” ou está “simplesmente” a relaxar.

Antes estivesse! E porquê? Entre muitas outras coisas, porque o relaxamento cria a libertação do stress retido nos nossos músculos. Não libertar isso faz com que o nosso corpo fique cronicamente fatigado, inflamado, alertado, exausto e o nosso sistema imunológico cai a pique: fica fraco, permitindo a entrada de doenças.

A sobrecarga da mulher (e especialmente, da mulher que também é mãe) tornou-se uma habilidade valorizada, mas será que isso é realmente benéfico? Estamos realmente a ser produtivas, ou estamos apenas a perpetuar a ideia de que o descanso é um fausto que não nos podemos dar?

As estatísticas revelam que mulheres que reservam tempo para relaxar são mais produtivas, tomam decisões mais acertadas e contribuem de maneira mais significativa para a sociedade. Ao nos apropriarmos do direito ao descanso, desafiamos as correntes invisíveis que nos prendem a uma ideia antiquada de produtividade. Não podemos esquecer que, como mulheres, somos importantes e também merecemos relaxar. Uma mulher completa e feliz é uma força a ser reconhecida, capaz de transformar não apenas a sua vida, mas o mundo ao seu redor.

Tenho pensado muito sobre a relação entre descanso e resiliência. Frequentemente, vemos a resiliência como sendo a qualidade de sermos mentalmente fortes e à capacidade de “avançar” de uma forma que, muitas vezes, nega os nossos limites.

E, no entanto, o oposto é verdadeiro. Tornamo-nos mais resilientes quando reconhecemos e abraçamos os nossos limites, quando nos damos permissão para sermos humanos, quando já não sacrificamos mais o descanso para trabalhar (sobretudo em “substituição” do que seria da responsabilidade de outrém), mas incluímos proactivamente o descanso nas nossas vidas, não só para nos ajudar a recuperar dos ‘stresses’ passados, mas também para nos proteger dos futuros, auxiliando-nos a ter mais fôlego (literalmente) para eles.

Existe uma espécie de luto, a par com um alívio, que vèem de aceitarmos que somos seres com recursos físicos e mentais limitados e que precisamos (como qualquer criatura viva neste planeta) reabastecer-nos regularmente através de experiências de descanso e recuperação, de calma, apaziguamento e regeneração, de não-esforço e de não-fazer.

E o que fazer com este cansaço nosso de todos os dias que é mental-espiritual-metafísico-emocional-socioeconómico-antropológico-filosófico-espiritual-sociológico-fenomenológico-existencial?

Para começar, aqui estão algumas perguntas de auto-questionamento para refletir e um ritual de descanso para praticar.

  • Faça a si mesma todos os meses esta simples pergunta: cuidei de mim tanto quanto cuidei de todos os outros? Se a resposta for não, pergunte-se porquê.
  • Se você não se ama o suficiente, ninguém mais a amará melhor – entenda que é você quem fornece às outras pessoas o guia sobre como a tratar.
  • E se isso falhar, pergunte-se: desejo uma vida sem descanso ou relaxamento para a minha filha/sobrinha/amiga? Se a resposta for não, não aceite isso para si mesma.
  • Se você está a achar difícil relaxar adequadamente, tente isto: tire o cropped e vá dormir.
  • Lembre-se de que as suas necessidades são importantes, você merece descanso tanto quanto qualquer outra pessoa.
  • Desafie a culpa que surge pelo mero facto de relaxar.
  • Observe quanto custa para si e para as pessoas ao seu redor não relaxar: você está ressentida, infeliz, exausta e não consegue dar o melhor de si aos outros? Pois.
  • Comece aos poucos: sente-se por períodos de silêncio e descanse, e veja como é experienciar isso.
  • Pense no seu dia ideal de relaxamento: visualize onde você estaria, o que estaria a fazer, estaria sozinha ou acompanhada?
  • Escreva uma lista de coisas que você fez quando era mais jovem que lhe trouxeram alegria, diversão e prazer, e comece por aí. Ou então, perceba como na verdade “tudo começou aí”…como assim?

As mulheres adultas que não puderam sentir relaxamento e leveza na infância têm ao mesmo tempo muita necessidade deste descanso e igual dificuldade em entrar em contacto com ele. É que se a protecção vinha através do estado de constante alerta, esse é o ‘caminho’ mais conhecido para o psiquismo. Exacto. Um estado de hipervigilância e ansiedade faz com que as pessoas fiquem permanente em estado de alerta e activação, em guarda e aflitos. Neste estado, é muito difícil conseguirem relaxar e participar de actividades lúdicas, o que pode levar a comportamentos de evitamento, onde tentam  afastar-se de qualquer coisa que os lembre as adversidades que viveram.. O descanso ou o carácter lúdico podem estar associados a vulnerabilidade, bem como a alegria ou a espontaneidade podem representar “fraquezas”, podendo desencadear sentimentos de ausência de controlo, que podem  ser sentidos de forma muito problemática. Como resultado, estas pessoas podem enterrar as suas inclinações brincalhonas numa vala comum de degredo e hiper-responsabilidades.

  • Lembre-se, você não precisa de permissão para relaxar; é o seu direito humano. Você “só” precisa de apoio, então peça.
  • Agende e cumpra o seu compromisso com o relaxamento. Neste quesito, parecerá esquisito, mas insisto e não resisto em dar-lhe mais um pouco disto: aprenda a dizer “não. Especialmente, quando surgirem outras coisas; elas sempre aparecerão. Se você tem um compromisso marcado consigo mesma para relaxar, cumpra-o.

Há alturas em que reagir e batalhar cansam demais. E você já vem vestindo essa armadura de guerreira imbatível há muito tempo.

No meio de um quotidiano cada vez mais stressante, em plena sociedade do cansaço, onde a exaustão é glorificada e vista como um símbolo de “status”, falar em descanso é trazer na boca o sabor da lutas pela igualdade, pelos direitos e pelo estabelecimento de limites.

 Se você se cansar, aprenda a descansar, não a desistir.

Um dos actos de maior coragem é reconhecer quando chegou a hora de só tomar um banho quente, deitar e esquecer a vida lá fora. Há batalhas que teremos de perder – ou pelo menos postergar – até ao momento em que o corpo disser que está firme outra vez. E talvez ele ainda aí more. E se demore. Está tudo bem.

O corpo mortificado foi uma invenção do patriarcado e da religião institucionalizada. Escolheram o corpo da mulher para ser o receptáculo de pecado e, a toda a hora,  fazem questão de a lembrar que você deve sentir-se culpada. Mas pelo quê? Bem, basicamente, por tudo. Tudo mesmo , mas especialmente por desejar, lá no fundo do seu ser, viver a vida com mais harmonia, alegria e prazer.

Descansar é mais do que necessário: é revolucionário! E o prazer diário é um acto de resistência.

Nesta óptica particular, o poder dos cochilos é libertador e subscrevo cada palavra da minha colega inglesa Nicola Jane Hobbs quando diz: “Ao longo da minha vida, nunca conheci uma mulher relaxada. Mulheres de sucesso? Sim. Mulheres produtivas? Bastante. Mulheres ansiosas, com medo e que pedem desculpas? Montes delas. Mas mulheres relaxadas? Mulheres à vontade? Mulheres que não dividem os seus dias em intervalos de meia hora de produtividade? Mulheres que priorizam o descanso, o prazer e a brincadeira? Mulheres que não têm medo de ocupar o seu espaço no mundo? Mulheres que se dão permissão incondicional para relaxar? Sem culpa? Sem desculpas? Sem sentir que precisam merecê-lo? Não tenho certeza se já conheci uma mulher assim. Mas eu gostaria de me tornar uma.”

Empoderar as mulheres a apropriarem-se do seu direito ao descanso não é apenas uma busca por equidade, mas uma necessidade para a saúde física e mental. Uma mulher completa e feliz não apenas se beneficia a si mesma, mas torna-se uma força transformadora na sociedade. Ao reconhecer a importância do descanso, podemos começar a quebrar os padrões violentos que perpetuam a sobrecarga feminina.

A negação do direito ao descanso é parte integrante de uma estrutura patriarcal que historicamente vedou o acesso das mulheres ao prazer e ao repouso. Uma mulher que ousa relaxar desafia não apenas normas culturais, mas questiona a raiz do problema: porque é que o descanso é visto como um luxo e não uma necessidade básica?

Deixo-a com um mistério enigmático (e insanável) para desvendar. Diga-me, se quiser:

  • Quando foi a última vez que você realmente relaxou?
  • Como você busca relaxar e estar presente com segurança no próprio corpo?
  • Quando foi a última vez que se sentiu realmente digna de desacelerar, descansar e se deixar ser muito, muito feliz?

Se as respostas não a fazem sorrir, é altura de repensar a arte desta guerra que é, como mulher, ser incrivelmente feliz. O sucesso também é medido pela quantidade de gargalhadas dadas sem culpas e desculpas.

Uma mulher cansada não se faz feliz, mas ao redefinir o equilíbrio entre dever e prazer, ela pode descobrir que a verdadeira (r)evolução do bem-estar começa com um brilhozinho nos olhos, renovado dentro de si.

Sara Ferreira

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