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Kali Musa: novos olhares sobre a feminilidade

Irreverência e elegância são apenas duas das características que nos saltam à vista quando olhamos para si.  A paixão pela dança levou-a até Nova Iorque e Los Angeles, onde estudou e foi introduzida à cultura Ballroom e ao clubbing underground de Nova Iorque. Entre poses alternadas e linhas infinitas, a bailarina profissional e Voguer é Mother fundadora da Kiki House of Musa e membro da International House of Elle, e já performou para marcas internacionais, como a famosa Christian Louboutin na Semana de Moda em Paris de 2022. Pessoa não-binária e de origem cigana, traz-nos novos olhares sobre a feminilidade.

Artista de vários nomes. Nas suas palavras, quem é Kali Musa? 

Sempre me atribui vários nomes. Vou passando por “ciclos” intensos de destruição, libertação e reconstrução, em que vou renovando a minha pele. Kali e Musa são nomes que vieram ter comigo quando me rendi a mim mesma. Kali não pode ser definida. Nem por tempo, nem por espaço. É cura, é fogo, é enraizamento em si. Kali é e gera Poder.

Viveu em Nova Iorque e Los Angeles, onde estudou dança. Pode contar-nos um pouco sobre o seu percurso enquanto bailarina?

A dança faz parte do meu modo de viver, e desde cedo que se manifestou no meu fascínio por música do médio oriente e sul asiática. Os meus pais não permitiram que dança fosse a minha primeira opção académica, mas sempre me proporcionaram aprender em pequenos estúdios de dança locais. Foi após concluir a minha licenciatura em Design do Produto, em Viana do Castelo, que me mudei para Nova Iorque para estudar na Peridance Capezio Center, durante dois anos e meio. Tive a sorte de ter a minha mãe ao meu lado, que me apoiou e me proporcionou esse sonho com muito custo e sacrifício. Posso dizer que foi lá que iniciei verdadeiramente a minha educação em dança, para não falar da escola que a underground club culture de  Nova Iorque me proporcionou. Entre Nova Iorque e Los Angeles, pude aprender com os mentores que eu escolhi, muitos deles pioneiros e ícones nas suas comunidades, uma delas a Ballroom, de que faço parte. Não posso romantizar a minha experiência de viver sozinha nos Estados Unidos da América, foi com certeza das mais transformadoras e estou muito grata por levar isso comigo. Regressei a Portugal devido a uma lesão, mudei-me para Lisboa e a vida levou-me a ficar aqui até hoje. Iniciei o meu projeto com a Kiki House of Musa, desenvolvi-me enquanto professora de Vogue e mentora na comunidade Ballroom, e tive a oportunidade de trabalhar com diferentes artistas da indústria da dança e da moda em projetos nacionais e internacionais. Neste momento, conectar-me com a minha identidade Rromani (cigana) leva-me a estudar danças e músicas e culturas que sempre estiveram presentes em mim e nos meus contextos, como o flamenco, danças tradicionais indianas e danças orientais, que são inúmeras, traduzindo-se também no meu Vogue.

Quando é que começou a dançar Vogue e o que é exatamente este tipo de dança?

Para contextualizar, Vogue é um movimento artístico extremamente estético, é moda em movimento, criado pela comunidade Ballroom em Nova Iorque nos anos 70/80, uma arte viva que ainda hoje continua em desenvolvimento. Surge num contexto cultural e social onde pessoas negras, latinas, trans, queer e marginalizadas criaram um espaço de encontro para se poderem celebrar e ao mesmo tempo lutar pela sua sobrevivência, para resistirem a uma sociedade opressora racista, capitalista, patriarcal, dominada pela supremacia branca. A história do cultivo deste espaço e as suas origens remete-nos até mesmo antes dos anos 20 com as Drag Balls, e toda a arte criada pela comunidade Ballroom que conhecemos hoje (‘60s) culminou no Vogue. A meu ver, é um meio para explorar diferentes formas de expressão de energia yin, por originalmente focar na estética e precisão de movimentos “extravagantes” inspirados em poses de modelos ou mesmo hieróglifos egípcios, artes marciais e outras artes de diversas culturas ao redor do mundo. É como se fosse um grito silencioso e simultaneamente ensurdecedor.

Comecei a pesquisar sobre o Vogue num momento da minha vida em que decidi abraçar a minha “feminilidade”, que até então era vista como ousada, provocadora e até mesmo suja no meio em que eu vivia, em Viana do Castelo. A hipersexualização do meu movimento acabou por criar em mim sentimentos de vergonha. O Vogue deu-me a possibilidade de só ser, de me celebrar em comunidade e de poder também contribuir para aquele espaço. Em 2015, tive um workshop com Danielle Polanco (outrora legend da Iconic House of Ninja) que me marcou e me motivou a tomar a decisão de me mudar para os Estados Unidos da América. Experienciar a cultura Ballroom de Nova Iorque despertou em mim uma grande crise de identidade, que foi extremamente necessária para hoje ter uma maior compreensão e conhecimento sobre mim mesma.

O que é ser Mother fundadora da Kiki House of Musa e membro da House of Elle?

A cena Ballroom (kiki e major) organiza-se em Houses que competem pelos seus nomes nas balls. Ser Mother de uma House é ser uma figura de apoio, é assumir a responsabilidade de orientar os membros da casa no seu percurso na Ballroom e nas suas jornadas pessoais. Fundei as Musas em 2019, oficializadas dois anos mais tarde enquanto Kiki House, a primeira de Portugal. São uma família que eu pude escolher e ser escolhida. Representam uma base, uma proteção, um porto seguro. Partilhamos uma missão muito especial de querer contribuir para algo que é superior a nós. Temos atuado mais diretamente com a comunidade da Kiki scene, proporcionando e cultivando espaços de encontro, conversa e formação Ballroom dirigido a pessoas LGBTQ+, não brancas e migrantes em Lisboa. Esses encontros têm sido transformadores para muitos de nós, sendo que o trabalho que fazemos acaba por ser mais pessoal e atuar na base da comunidade.

A International House of Elle (major), original de Nova Iorque, surge mais tarde no meu percurso, sendo um legado que me foi transmitido pelo Father fundador Icon Stan Elle e pelo meu irmão Dutch Father Michael Elle, oficializando-me enquanto membro no ano passado. Após cinco anos na major scene sem casa por opção própria, poder hoje representar este nome criado por um ícone da Ballroom nova iorquina é uma grande responsabilidade e honra.

Quando é que a moda e a profissão de modelo surgem na sua vida?

É algo bastante recente. Sempre tive interesse nestas áreas, mas nunca soube como manifestar isso na minha vida, ou mesmo se era profissão para mim. Após performar para a Christian Louboutin na Semana da Moda de Paris, em 2022, várias portas se abriram e desde então que tem sido uma descoberta interessante. Gosto de expressar a minha individualidade através da moda e de explorar diferentes estéticas, estou curiosa pelos próximos projetos que aí vêm.

Como foi performar para a famosa Christian Louboutin?

Aconteceu tudo bastante rápido. Tomei conhecimento do casting através do assistente de coreografia do show, que é membro da Ballroom, comprei a viagem para Paris de um dia para o outro e fui. Quando dei por mim tinha sido contratada, não só como bailarina para o show mas também como modelo para o teaser e para o vídeo promocional das peças. Tive a oportunidade de performar na Torre Eiffel ao lado da cantora Vendredi Sur Mer e de bailarinos incríveis na Semana da Moda de Paris, após um mês e meio de ensaios. Foi surreal em ambos os aspetos: por ser uma profissão cheia de oportunidades, recursos e glamour, mas também extremamente precária. Foi uma experiência enriquecedora e um lançamento enquanto modelo profissional.

Afirma-se como pessoa ‘Gender Questioning’ e Não-binária. Num mundo cheio de informação, às vezes confusa, o que é exatamente isto?

A questão de género tem sido muito presente na minha vida. Vou questionando o conceito de género, vou procurando compreender o que isso significa para mim e aceitando a minha indefinição.

Compreendo a minha mulheridade, sendo que as minhas vivências foram condicionadas por ser percecionada como mulher cis, por ter sido educada como mulher cis e ter essa experiência social, semelhante a outras mulheres e pessoas a que lhes foi atribuído o género feminino à nascença. No entanto, hoje tenho uma maior compreensão do meu todo. Tem sido cada vez mais difícil dar nome ou explicar por palavras a forma como experiencio esse todo. Não me identifico com o conceito de género. Compreendo que o meu papel social e a minha missão neste mundo não são caracterizados por um género, e obrigar-me a definir é encostar-me a um canto, tentar encaixar-me num conceito que não cabe em mim e eu não cabo dentro dele.

A forma como sou percecionada socialmente é algo que me preocupa cada vez menos. Nem toda a gente irá compreender a forma como eu sinto essas questões cá dentro, e está tudo bem. É importante para mim que eu esteja em paz com a minha própria indefinição.

Conta que mencionar que é de origem cigana é algo muito importante para si. Porquê?

Talvez a questão seja: Por que não mencionar?

Faz parte de mim, da minha ancestralidade. Faz parte da história da minha família enquanto pessoa mestiça de pai cigano e mãe branca. Está diretamente conectado com a forma como sinto e expresso a minha arte.

Fui criada mais longe da cultura, como estratégia dos meus pais para me proteger a mim e às minhas irmãs do preconceito e discriminação social, bem como de certos aspetos da etnia que, sobretudo no entender da minha mãe, poderiam prejudicar o nosso percurso. Hoje em adulta embarquei no processo de cura pessoal e ancestral de questões despertadas pelas minhas vivências. Escolho abraçar-me enquanto Rromani, sendo Rroma o verdadeiro nome da minha etnia e um nome que reivindico para mim. Existem muitas falhas de informações na história do meu povo, sendo que infelizmente sofreu várias tentativas de apagamento histórico, perseguição, escravatura, genocídio e um holocausto cigano, de que pouco se fala nos livros de história. É a nossa história que nos foi retirada, a nossa própria língua que nos foi proibida, enquanto o que continua a ser perpetuado popularmente são estereótipos que na grande maioria das vezes nada têm a ver com a cultura e etnia em si. Muitos ciganos para poderem ter vidas tranquilas e as suas necessidades básicas atendidas, sem serem vistos através das lentes criadas por esses estereótipos, precisam esconder quem são. Embranquecer. Isso foi o que uma parte da minha família fez e gerou traumas que deixaram muito rasto. Não quero fazer parte desse comportamento.

Profissionalmente, a sua origem já foi motivo de não conseguir determinado trabalho?

Até hoje, não tive nenhuma oportunidade negada porque fui muito protegida pela minha família nesse sentido, proteção essa que foi um ato de sobrevivência. Não considero isso um privilégio, não sei o que há de privilégio em alguém ter de esconder a sua identidade perante todos os meios sociais que frequenta para poder ter um tratamento igual à portugalidade branca. Tenho a certeza que o meu pai, nascido e criado numa família assumidamente cigana, passou por experiências muito mais difíceis que eu. Agora em idade adulta recuso-me a esconder-me na minha profissão como artista, mas vejo-me privada de mostrar abertamente a minha etnia para conseguir coisas simples, como alugar um quarto. Receio quando me perguntam de onde sou por acharem que não sou portuguesa, pois remete-me ao tempo em que eu precisava de mentir sobre a minha origem para os meus pais não perderem os seus empregos ou sofrerem outras consequências piores.

Considera que há, ainda, muito preconceito?

Sim, não só relacionado com os ciganos, mas com qualquer outro grupo que saia do que é considerado normativo numa sociedade portuguesa que, repito, é racista, capitalista, patriarcal, e dominada pela supremacia branca na sua estrutura, para além de ser também homofóbica e transfóbica. Ninguém deveria viver refém de um preconceito e de estereótipos que acabam por distrair das verdadeiras questões relacionadas com esse grupo. 

No caso dos ciganos, ainda não existe muita representatividade cigana com visibilidade nos meios de comunicação social, nos palcos, em diferentes cargos à nossa volta. Felizmente, começa a haver cada vez mais e isso representa pequenos grandes passos para desmanchar o preconceito e os estereótipos. No entanto, é um caminho muito longo. Uma das minhas maneiras de contribuir é exatamente assumir a minha identidade na minha profissão enquanto artista. Considero muito importante as pessoas BIPOC (black, indigenous, people of color), com as suas diferentes lutas inerentes às suas histórias, se aliarem e se auxiliarem na luta pela igualdade de oportunidades para pôr fim ao racismo estrutural da nossa sociedade. O futuro também é cigano. O futuro também é Rromani.

Que sonhos a movem?

A minha busca por mim própria é incessante. É isso que me move, ser em mim e na minha missão com os outros. Libertar-me do que não me pertence. Quero viver a cantar e a dançar, rodeada de música, de natureza, de pessoas que respeitam a Terra e todos os seres. Mais do que um sonho, é a minha realidade interna e o que quero alcançar. Todos os outros sonhos são consequência.

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