

Era uma vez… um beijo roubado. Um beijo que não foi pedido, nem sequer imaginado, mas que nos ensinaram a admirar. A suspirar. A desejar. Foi assim, com este gesto camuflado de magia, que começou o encantamento mais tóxico da nossa infância — o feitiço que nos ensinou a confundir invasão com paixão.
Chamaram-lhe “amor à primeira vista”. Mas esqueceram-se de dizer que ela nem sequer tinha os olhos abertos. Senão vejamos. A Branca de Neve estava inconsciente quando foi beijada. Sim, dormia, vulnerável, e um homem estranho decidiu que o seu amor era suficiente para justificar atravessar-lhe os lábios. Chamaram-lhe príncipe. Chamaram-lhe herói. Nós chamámos-lhe “romântico”. Mas e se olhássemos outra vez, desta vez sem os óculos cor-de-rosa da infância? Talvez víssemos um invasor de corpos, um violador de limites, um homem que não ouviu um “sim” — e mesmo assim avançou.
Aurora, a Bela Adormecida, nem sequer sabia que existia um príncipe. Ariel perdeu a voz — literalmente — para conquistar um homem que nunca a escutou. Bela apaixonou-se por alguém que a manteve em cativeiro. E Rapunzel só saiu da torre quando um homem decidiu que sabia o que era melhor para ela. Todas estas estórias têm algo em comum: são estórias de mulheres com limites violados e homens glorificados por isso. Porque o que nos foi contado, nos livros, nos desenhos animados, nas músicas e nos gestos à nossa volta, foi que um homem que te invade é um homem apaixonado. Que se ele te persegue, é porque te quer. Que se ele insiste quando tu dizes “não”, é porque o amor não desiste. Que se ele te rouba um beijo, mesmo sem convite, é porque o sentimento é tão verdadeiro que não cabe no corpo.
Mas não é apenas um beijo. É o primeiro de muitos pequenos atropelos que aprendemos a aceitar com um sorriso colado à vergonha. Porque, às vezes, os sinais de alerta podem até parecer românticos ou emocionantes — simplesmente porque não sabemos melhor. Aprendemos a ver intensidade onde há invasão. A chamar atenção ao que, na verdade, é controlo. E assim, os comportamentos de sinal de alerta vão passando, sorrateiros e bem vestidos, disfarçados de paixão.
Isto não é ficção — é condicionamento.
Mas não é apenas um beijo. É o primeiro de muitos pequenos atropelos que fomos ensinadas a tolerar, quase sem perceber. Um gesto aparentemente inofensivo, embalado em música suave e animação colorida, que nos sussurra que o amor verdadeiro ultrapassa tudo — até os nossos limites. E assim, ainda em tenra idade, aprendemos a sorrir perante aquilo que, lá no fundo, já nos causava um ligeiro desconforto. Um sorriso colado à vergonha, à dúvida, à sensação de que algo está errado… mas talvez sejamos nós a exagerar. Afinal, era só um beijo. Só um gesto de amor.
Só que às vezes os sinais de alerta não vêm com sirenes. Vêm disfarçados de adrenalina, de romance, de atenção. A intensidade de um olhar insistente, a mensagem constante, o ciúme declarado como prova de interesse — tudo isso pode parecer emocionante para quem nunca aprendeu a identificar o que é invasão emocional. Confundimos obsessão com entrega. Chamamos “preocupação” ao controlo, e “zelo” à tentativa de nos moldar. E assim, as primeiras bandeiras vermelhas passam-nos à frente dos olhos pintadas de cor-de-rosa, como se fossem flores num início de primavera.
Mas o que parecem ser gestos de amor são, muitas vezes, ensaios de abuso. Pequenas infrações que testam os nossos limites para ver até onde se pode ir. E quando toleradas, elas não desaparecem — agravam-se. São mais do que violações. São presságios. São promessas silenciosas de um padrão que se vai repetir. Porque quem se permite atravessar um “não” uma vez, fá-lo-ia mil vezes mais. E nós, se não soubermos reconhecer esses primeiros passos em direção ao abismo, acabamos por cair acreditando que estamos a voar. Só que eles não são gestos de amor — são essencialmente violações de limites. São promessas. Promessas de mais por vir.
Foi assim que aprendemos a normalizar o desconforto. A confundir posse com amor. Autoritarismo com protecção. Exigência com desejo. Muitas mulheres apenas desconhecem as bandeiras vermelhas — e por isso não as reconhecem. Sentem-se desejadas quando, na verdade, estão a ser vigiadas. Sentem-se únicas quando estão a ser isoladas. Sentem-se procuradas quando estão a ser perseguidas. E só mais tarde, muito mais tarde, descobrem que aquilo que parecia amor era o seu completo oposto.
A psicologia confirma: fomos socializadas para ver sinais de alerta como provas de entrega. A insistência como esforço. A possessividade como zelo. O ciúme como zelo. O controlo como demonstração. E o desconforto? Como preço a pagar por uma história bonita. Uma história que possamos contar às amigas com a voz embargada e o coração em chamas. Mas o que está mesmo a arder, minhas caras, são os nossos limites. Queimados por um modelo de amor que é tudo menos amor.
E não é só no imaginário. É na vida real, nos corpos reais, nas casas reais. Em Portugal, os números são arrepiantes. Só em 2024, foram registadas mais de 30.000 queixas de violência doméstica junto à PSP e à GNR. Dessas, 22 resultaram em morte — 19 mulheres e 3 homens. A APAV apoiou 11.993 vítimas, um aumento de 29% face a 2020. No namoro, os números não são menos graves: a GNR registou 1.592 crimes de violência no namoro e a APAV acompanhou 1.023 vítimas — 87% mulheres. O mais trágico? Metade dessas mulheres ainda estão nas relações. Porque acreditam que o amor é mesmo assim. Que o amor muda. Que o amor sofre. Que o amor morde e depois pede desculpa.
Este romantismo da dor está a matar-nos — literal e simbolicamente. Está a ensinar às mulheres a duvidar dos próprios instintos. A viver para agradar. A escolher a aprovação dos outros em vez da sua própria integridade. E aqui estou eu, caríssima, para lhe dizer: o seu trabalho não é ser gostada por pessoas que nem de si gostam. O seu trabalho é viver de acordo com o que é íntegro para si. É construir uma vida em torno dos seus valores, não das suas inseguranças. É aprender a confiar em si mesma. Porque viver para agradar os outros só a levará ao arrependimento. Ao arrependimento amargo de ter deixado passar todos os alertas porque queria ser aceite.
Mas não se engane: esta crónica não é um apedrejamento de princesas, nem um tribunal de contos infantis. É um espelho. Um grito. Um convite a reescrevermos o guião. Porque o verdadeiro final feliz não é quando ele nos escolhe — é quando nós escolhemos sair do ciclo. Escolhemos acordar. Escolhemos respeitar os nossos “nãos”. E aí escolhemo-nos, finalmente, a nós mesmas.
Chegou o tempo de rasgar os contos de fadas. De reescrever a narrativa. De ensinar às meninas que o amor não entra sem ser convidado. Que a paixão não justifica o desrespeito. Que um beijo não pedido é um abuso — mesmo que venha com cavalo branco. Que quem ama pergunta. Espera. Aceita o “não” com a mesma ternura com que deseja o “sim”.
E é tempo também de falar com os rapazes. De os educar a ver consentimento como beleza, e não como obstáculo. A entender que “insistir” não é romântico — é violento. Que não lhes devemos nada só porque têm sentimentos. Que não há romantismo na transgressão de fronteiras. Há ego. Há ignorância. Há machismo estrutural.
As estórias que nos contaram são lindas — até deixarmos de ter sete anos. Depois disso, ou aprendemos a questioná-las, ou continuamos a viver dentro delas, cortando pedaços do nosso corpo para caber no molde do amor que nos venderam.
Não, o amor não é nem tem de ser descontrolo. O amor não é insistência. O amor não é o beijo roubado. Amor é o beijo consentido, desejado, celebrado. Amor é fusão de corpos que se desejam, sentem e consentem mutuamente. Amor é escuta, é espera, é limite respeitado. É o contrário de tudo o que nos ensinaram nas estórias encantadas.
E o final feliz? Não é quando ele nos salva. É quando nós nos salvamos da ideia de que precisamos ser salvas. É quando ficamos inteiras. Inteiras de voz. Inteiras de corpo. Inteiras de verdade.
Porque a maior violação não é a que vem de fora. É a que deixamos ficar. É aquela que nos ensinaram a normalizar, a romantizar, a calar. A que se instala sorrateira sob o pretexto do amor, do cuidado, do “é só o feitio dele”. É o silêncio que engolimos para não parecer difíceis, ingratas ou dramáticas. É a voz que sufocamos dentro de nós sempre que o instinto gritava “não” e o medo, a “sobrevivência” ou a esperança responderam “talvez”.
Essa é a violência que mais fere: a que nos faz trair a nós mesmas.
E o verdadeiro feitiço, esse que nenhuma fada madrinha pode lançar, é o de uma mulher que finalmente acorda. Acorda dos enredos encantados e das histórias escritas por outros. Acorda da culpa, da cegueira emocional, da espera pelo salvador. Acorda — e em vez de esperar o príncipe, começa a salvar-se a si mesma.
Porque uma mulher que desperta, não volta a adormecer nos braços de ninguém. Afinal, o “felizes para sempre” só começa quando termina o enredo que nos mandaram decorar. E, sobretudo, deixemos de aceitar como amor aquilo que sempre foi, apenas e só, violação disfarçada.
Sara Ferreira
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