Acredito que concordes que alimentar uma criança não pode ser separado da parentalidade. E é curioso, muitos pais apoiam a autonomia dos filhos quando estes decidem não levar casaco, deixando que sintam frio como uma “consequência natural”. Contudo, quando toca à comida, essa lógica parece desaparecer. À mesa, instala-se muitas vezes o “faz o que eu digo” e as refeições transformam-se num palco de negociações, ameaças e recompensas.
A preocupação é legítima. Afinal, queremos que os nossos filhos cresçam saudáveis e bem nutridos. Mas há aqui um ponto essencial: não é só o que comem que importa, é também como os alimentamos.
O corpo humano funciona como um verdadeiro “detetor de perigo”. Quando uma criança se sente pressionada ou criticada à mesa, ou quando vê no prato um alimento novo, o seu sistema nervoso entra em alerta máximo: lutar, fugir ou congelar. O coração acelera, a respiração muda, os músculos ficam tensos. Nesse estado, o corpo está preparado para sobreviver, não para digerir, muito menos para arriscar provar um alimento.
Agora imagina o contrário: um ambiente em que a criança sente calma, ligação e segurança. O corpo relaxa, a digestão acontece melhor, o cérebro fica disponível para aprender e a curiosidade desperta. É aí que a magia acontece, é nesse espaço seguro que, mais cedo ou mais tarde, até os legumes são provados.
E por isso o como alimentamos as crianças importa. Importa promover um sistema nervoso calmo, regulado, que sinta segurança. Parece abstrato? O Dr. Gabor Maté costuma dizer algo que ajuda a simplificar: “Segurança não é a ausência de ameaça, é a presença de conexão.” E, convenhamos, para algumas crianças um simples brócolo pode parecer bem mais ameaçador do que uma corrente de ar sem casaco.
O que isto quer dizer na prática? Que não precisamos de transformar cada refeição num teste ou numa guerra fria de colheradas. Precisamos, sim, cultivar um clima de confiança. Quando os pais respiram fundo, deixam cair a pressão e se conectam, a criança percebe: “Posso estar segura aqui. Posso dizer não. Posso explorar ao meu ritmo.”
Às vezes, isso traduz-se em pequenas coisas:
- Aceitar que hoje o prato ficou meio cheio, mas amanhã pode ser diferente.
- Trocar a negociação pelo diálogo leve: uma história, uma gargalhada, um olhar cúmplice.
- Lembrar que nutrir não é apenas sobre vitaminas, mas também sobre vínculo.
No fundo, o prato é importante, mas o que realmente fica é a ligação (ou falta dela). O teu filho pode esquecer se comeu ou não cenouras esta semana, mas vai guardar a memória de como se sentiu à mesa: pressionado ou respeitado, em tensão ou calma, sozinho ou conectado.
Porque no final das contas, o que sustenta não são só os alimentos, é a forma como nos alimentamos uns aos outros na relação.
E tu, que memórias queres que o teu filho leve da mesa?
Com carinho,
Filipa Gomes

Especializada em alimentação responsiva e fundadora do projeto Oishi, a sua missão é apoiar famílias na construção de refeições mais tranquilas, promovendo confiança, autonomia e ligação à mesa. Com base na sua experiência profissional e na maternidade, acredita que a alimentação é um espaço privilegiado para fortalecer relações. Atualmente, acompanha mães e crianças a criarem memórias felizes e uma relação mais saudável com a comida.
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