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Desculpem as obras, estamos em transtornos

Se há uma coisa que nós, mulheres, passamos em branco mais do que qualquer creme nívea é a raiva. Claro, com todas as injustiças, desigualdades e violências que sofremos quotidianamente é mais do que compreensível que muitas de nós se encontrem furibundas. Mas isso significa que expressamos “naturalmente” essa emoção? Nem por isso.

Desde pequenas, somos ensinadas que a raiva é a coisa mais perigosa e destrutiva que carregamos dentro de nós. Devemos ser (sempre) mansas, comportadas, boazinhas, gentis, pacatas e tantos outros adjetivos que caracterizam o feminino como género anódino e naturalmente feito para o cuidado abnegado.

Estes mandatos são tanto ou mais cruéis quando, por conta deles, ficamos tão ocupada(o)s a reproduzi-los sem questionamento, ensinando as meninas a serem agradáveis, que nos esquecemos de ensiná-las (como fazemos com os meninos) que elas devem ser respeitadas.

O problema é que, para as mulheres, ser uma pessoa “respeitável” ou “boa” geralmente significa aceitar o inaceitável ou suportar o insuportável. Quantas vezes, num autocarro da vida qualquer, um estranho se sentou desconfortavelmente perto de mim e me encarou de alto a baixo, e eu ainda tive receio de simplesmente levantar-me e sair, a fim de não o ofender? Quantas vezes, perante um assédio grotesco, a minha reacção mais “automática” foi sorrir, mesmo que desconfortavelmente?

No nosso mundo, um homem é confiante, mas uma mulher é arrogante. No nosso mundo, um homem é assertivo, mas uma mulher é agressiva. No nosso mundo, um homem é estratégico, mas uma mulher é manipuladora. Um homem é um líder, uma mulher é controladora. Um homem é autoritário, uma mulher é chata.

A qualidade essencial do comportamento é o mesmo, o que difere é o género. E baseado neste, o mundo desde há eras fez suposições diferentes, criou expectativas diferentes e o mundo trata-nos de maneira diferente.

A normalização da passividade faz-nos crer que tanto sentir, como responder com raiva a situações abusivas é digno de vergonha, pois indica um desequilíbrio mental.

É importante lembrar que as situações abusivas não se restringem somente aos relacionamentos amorosos; são vivenciadas também nas relações no trabalho, na família, nas amizades, nas instituições, e em qualquer outro espaço social.

O mundo até pode andar do avesso, mas felizmente estou cá eu para dizer-lhe – com base nesse mix entre ciência e humanidade chamado Psicologia – que responder com raiva a situações abusivas não é sinal de desequilíbrio mental, pelo contrário.

As mulheres, historicamente, têm sido uma das maiores vítimas deste discurso, sendo acusadas de serem “loucas” ou “histéricas” quando comunicam insatisfações, quando denunciam limites ultrapassados, quando rejeitam abusos sofridos, tendo a própria sanidade e percepção constantemente postas em cheque.

É hora de admitir que as mulheres também têm um stock de ira guardado, e não, não é o tipo que pode ser eliminado com chá de camomila ou um abraço virtual.

Mas porque será que se consolida com tanta força na nossa cultura essa visão normativa da raiva como sinónimo de algo sempre negativo (quando aplicável a mulheres)?

Apraz-me questionar: afinal, quem tem direito a sentir e a expressar a raiva na nossa sociedade (talvez, aí sim, até de uma forma bem transtornada)?… A visão do “homem racional” alimenta a nossa cultura, cria narrativas históricas e (re)produz exactamente a visão de “classe” que se quer produzir (ainda que 90% dos crimes violentos do mundo sejam praticados por eles).

A raiva das mulheres, ainda que justa, é e tem sido patologizada. A raiva da mulher “louca”, descontrolada, exagerada, inclusive é usada contra ela mesma e tornou-se um estereótipo. Você permite-se acolher a raiva de outras mulheres? E a sua?

As mulheres por “precisarem” suprimir a sua raiva, na nossa cultura, deslocam-na muitas vezes contra as crianças e outras mulheres. Você percebe a grande roda da opressão que esmaga as pessoas mais vulneráveis, dentro e fora de casa, e colonializa os nossos pensamentos e práticas, transgeracionalmente?

É preciso que se investigue as raízes sociais e subjectivas que fazem gritar, bater e deslocar as nossas emoções mais difíceis umas contras as outras e para as nossas crianças, pois a única raiva permitia à mulher é a que ela destila aos filhos e às congéneres, e este padrão precisa ser entendido para ser rompido.

Na nossa nugacidade, estudava-se Filologia Românica e empinavam-se maneiras insidiosas em como as mulheres são socializadas para abafar a sua raiva, muitas vezes para aplacar os outros – a custo da sua própria saúde física e mental.

Por exemplo, as mulheres são duas vezes mais propensas do que os homens a serem diagnosticadas com transtornos de ansiedade ou depressão e três vezes mais propensas a desenvolver doenças auto-imunes. Além disso, as mulheres têm quatro vezes mais probabilidade de sentir dores de cabeça e enxaquecas. As mulheres também são mais propensas a desenvolver meningiomas, o tipo mais comum de tumor cerebral, e são mais atreitas a acidentes vasculares cerebrais fatais.

As mulheres também são mais susceptíveis à doença de Alzheimer, a principal causa de demência em todo o mundo, que afecta mais de 35 milhões de pessoas. Apesar dessas estatísticas, nenhuma dessas condições está classificada na área da “Saúde da Mulher”. Actualmente, “Saúde da Mulher” concentra-se predominantemente na saúde reprodutiva. Interessante #sóquenão, não é? Mas isso daria pano para outras mangas…

Já tenho escrito sobre as marcas potencialmente fatais do condicionamento para sermos as “boazinhas” de serviço, e – com o respaldo de inúmeros estudos e autores de destaque – infelizmente afirmo que isso, literalmente, está a matar-nos, a deixar-nos doentes.

Isso está a fazer com que nos percamos. Está a criar uma cultura de seres humanos amargos, vazios e perdidos. A repressão emocional adoece-nos. Em particular, a repressão da raiva.

Pois é, as estatísticas são chocantes e inegáveis, mas poucos ousam perguntar: porque será que as mulheres são desproporcionalmente atingidas por essas condições?

É como se uma mulher não pudesse sentir raiva sem ser reduzida a apenas “ser raivosa”.

A raiva é uma emoção humana. Todas as pessoas sentem emoções, e as emoções são informativas e também motivadoras. Prestar atenção a elas e expressá-las é saudável e necessário para todos nós. E há muitas coisas com as quais se irritar, uma das quais é por exemplo as terríveis injustiças que abarcam a misoginia, o sexismo e as desigualdades de género.

E quem dera que fosse só a brincar ao cinema negro, mas é a sério. Fingir que a raiva não existe não faz com que você deixe de senti-la.

Precisamos dizer a alguém “não” ou “não me sinto confortável” ou “quando isso aconteceu eu senti que…” Precisamos ser ouvidas. Precisamos criar espaço para que outras pessoas digam o que precisam dizer. E tudo bem se o que estamos a dizer não for “agradável” – às vezes isso é necessário. Afirmar-nos nem sempre parecerá bom. Pode até parecer “rude” para as pessoas que preferem que você passe a vida a mascarar o que sente (e “lucram” por cima disso). Podemos aprender maneiras que, simultaneamente, nos permitem dizer o que precisamos dizer e sermos gentis e respeitosas com todos os envolvidos.

Diga, respeitosamente. O nosso corpo e mente pagam o preço quando nos reprimimos. Quando nos negamos. Quando tentamos ser “boazinhas” às custas do nosso próprio bem-estar.

Como diria aquela música do Arnaldo Antunes (com alterações que fiz em licença poética): “Peste bubónica, raiva, difteria / Toxoplasmose, estupidez, esquizofrenia / Brucelose, culpa, tétano, hipocrisia / Rancor, cisticercose, caxumba, difteria / Raiva, rubéola, tuberculose e anemia / Encefalite, faringite, gripe e leucemia. O pulso ainda pulsa. O corpo ainda é pouco.”

A raiva pode ser um poderoso motor de mudança, mas quando é reprimida, as pessoas tendem a ter dificuldade nos relacionamentos (além do evidente impacto sobre a saúde mental e física que antes mencionei, além dos mais “corriqueiros”, como stress crónico, distúrbios de sono, cansaço, gastrite, etc.).

Então, como podemos transformar essa raiva numa força brava positiva? A resposta está no auto-cuidado, na terapia, na meditação e no movimento. Yoga não são apenas posturas elegantes; é um caminho para liberar a tensão acumulada. A escrita não são apenas palavras; é uma válvula de escape para os sentimentos profundos que foram selados. E, juntas, podemos formar círculos de apoio, lembrando-nos mutuamente que não estamos sozinhas nesta odisseia.

Estar em terapia pode ser uma excelente ferramenta. Um apoio profissional para auxiliar nesta jornada e criar estratégias que estejam dentro do seu alcance e da sua realidade e individualidade. Na terapia, você reconhece estes sentimentos e identifica o que os provoca, ajudando a ter esse repertório emocional para acções concretas que ajudem a ampliá-lo, reduzindo os efeitos negativos.

Aquilo que nos incomoda mostra para onde devemos direccionar a nossa acção, porém, o problema é que a repressão de emoções intensas costuma gerar consequências nocivas que vão além da saúde psicológica, afectando o corpo físico. Não podemos esquecer-nos que a raiva é um sentimento humano poderoso e válido, que nós, mulheres, também temos o direito de a sentir e expressar. Ao tentarmos ignorá-la, ela pode manifestar-se de formas insalubres, impactando o nosso bem-estar e os nossos relacionamentos.

E quer saber outra? A raiva é o que nós, psicólogos, chamamos de emoção activadora, isto é, que nos impulsiona e nos faz envolver em vez de recuar – e isso é o que é necessário para impulsionar a sociedade.

Apesar de haver claros benefícios em ficar calmo(a) em vez de zangado(a), especialmente com o tempo – como menos stress fisiológico, melhor imunidade e menor risco de doenças cardíacas, por exemplo – saiba que a raiva reprimida não é de todo benéfica e, de facto, pode levar a inúmeros problemas de saúde ou depressão.

Embora as mulheres muitas vezes se sintam desconfortáveis em expressar a sua raiva, isso não significa que elas não a sintam, ela insiste e persiste (não desiste, porque se lhe resiste!); em vez disso, a sua raiva – frequentemente desencadeada por (des)tratamentos injustos, tóxicos ou abusivos, ou falta de reciprocidade nos relacionamentos, de acordo com a investigação – é mal interpretada ou desconsiderada.

Só que a raiva pode ser um sentimento potente. É ela quem nos alerta e mobiliza em contextos de opressões, desrespeitos, desconsiderações, violências. Sem a raiva tornamo-nos passivos e submissos. E assim, não há reivindicação, não há luta, não há melhorias possíveis (e tudo isso vai alimentando ‘ad aeternum’ a máquina das opressões sociais, sempre de mãos dadas com a instigação do medo, da culpa, da vergonha, etc.)

Navegar é preciso. E revoltar-se, por vezes, também.

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça é uma mulher que expressa a sua raiva saudável, e porquê? Porque ela é capaz de mover o mundo. Fomos tão arredadas deste sentimento justamente pelo poder que ele nos traz.

As mulheres que trabalham saudavelmente a sua raiva sabem proteger-se e estabelecer limites adequados. Sabem também detectar (porque não normalizam) os sinais de alarme ou de perigo numa relação. Conseguem inclusive adquirir um senso de auto-valorização pessoal: panaceia contra toda a baixa auto-estima e auto-punição. Sim, as mulheres que acolhem e direccionam assertivamente a sua raiva têm motivação para buscar mais felicidade e lutar pela igualdade, pelos seus direitos e desafiar as injustiças. A fúria, aliás, faz bons amantes e une-nos, conectados pela sororidade, pela solidariedade, pela partilha de experiências que não nos segregam, mas antes juntam-nos para enfrentarmos as barreiras sociais e as múltiplas formas de misoginia e opressão, promovendo maior coesão e a paz.

A dor aponta para o que importa. Ao invés de deixar o sentimento implodir dentro de nós, precisamos deixá-lo explodir em energia transformadora. A raiva pode ser uma poderosa propulsora para a acção, quando devidamente conduzida. É um convite para buscar soluções, defender os nossos direitos e promover mudanças significativas na nossa vida e na sociedade.

“Não se encontram diamantes senão nas profundezas da terra; não se encontram verdades senão no mais íntimo da alma”, escreveu Victor Hugo, n’ “Os Miseráveis”. É inglório armar-se na “boazinha” que (indiscriminada e infinitamente) é compelida a dar a outra face. Mais punk do que isso, acredite, é impor limites amorosos e firmes para barrar aqueles que nos agridem, não se silenciando mais.

A raiva pode ajudar as mulheres a melhorar a sua saúde psicológica e fazer a sociedade avançar. Que ela seja, pois, levada mais a sério. Que parem de esconder ou disfarçar esse sentimento de descontentamento e se permitam ser construtivamente movidas por ele, pois é daí que virão as transformações de que precisamos.

Então, se você acha que essa raiva reprimida simplesmente desaparece, pense novamente. Ela manifesta-se de maneiras tão traiçoeiras quanto um veneno que se espalha lentamente pelas veias. Dores físicas inexplicáveis, colapsos emocionais aparentemente sem razão, essas são apenas as pontas do iceberg de uma bagagem emocional carregada. O corpo fala quando a boca cala, e essa linguagem muitas vezes traduz-se em doenças auto-imunes que, ironicamente, atacam o próprio templo que tentamos manter intacto.

A mente também sofre o abalo. A ansiedade, a depressão e os transtornos de humor não são simplesmente “fases” pelas quais as mulheres passam. São os ecos de séculos de repressão, uma avalanche de emoções negadas que finalmente encontra uma rota de fuga. O que estamos a enfrentar agora é um acerto de contas com o passado, um ajuste de contas com as nossas próprias almas.

Desculpem os transtornos, mas chegamos a uma fase da vida, da sociedade, do planeta (!) em que os ardis, os joguinhos de poder e as manigâncias psicológicas já cansam. Desculpem as obras, mas buscamos justiça, respeito, reciprocidade. Disponibilidade. Sentimentos reais, existências mais dignas e felizes e alguém que vá tumultuar a cama e não a nossa vida.

Desculpem as obras, mas a construção de um futuro saudável e vibrante exige uma renovação completa do presente. O que temos aqui é uma revolução, não destrutiva, mas transformadora. Uma revolução que nos lembra que a raiva é uma emoção humana, e negá-la é negar a nossa própria humanidade. Não mais seremos escravas da história reescrita para silenciar-nos; em vez disso, estamos a escrever as nossas próprias histórias, com tintas de verdade, ímpeto e coragem.

A raiva reprimida finalmente encontrou o seu lugar no mundo – não como uma força destrutiva (apanágio do “velho mundo” que temos tragado goela abaixo), mas como a centelha que acende a chama de uma mudança possível e em curso.

É hora de derrubar as paredes erguidas pela supressão. É hora de usar a raiva para redefinir, recriar e se reerguer. Afinal, desculpem as obras, mas estamos a desafiar as fundações do ‘status quo’ e a erguer estruturas de auto-expressão, saúde e vitalidade mais duradouras.

Sara Ferreira

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