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Millás: uma linha ténue

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Posso presumir que recusa o que diz a personagem do filólogo no romance , que as palavras são pontes para a realidade?

Não, não. As palavras são intermediárias entre a realidade e nós, mas, na mesma medida em que nos aproximam da realidade, afastam-nos dela. O ser humano perdeu a capacidade de se ligar diretamente à realidade. Precisamos sempre desse intermediário, desse representante que é a palavra. Na mesma medida, em que nos aproxima da realidade, a palavra, nesse mesmo instante, afasta-nos dela.

É por isso que escrever é uma espécie de ato de loucura? Os escritores lutam com a linguagem como os loucos com a realidade?

A função do escritor é sair da norma. É escrever uma linguagem anormal e não dizer lugares-comuns. Se isso é uma espécie de loucura, então sim. Por outro lado, nada estamos a dizer de novo. Entre a loucura e a literatura, há uma relação muito antiga e muito produtiva. Quantos poetas da história foram classificados como loucos? Sabe porquê? Porque os que descobrem os segredos da língua ficam loucos.

No livro, por que razão há duas personagens tão paralelas e tão opostas? Falo de Júlia e de Emérita.

Estas explicações damo-las a posteriori. Quando uma pessoa acaba de escrever um romance, nada sabe sobre ele. Depois, vêm os jornalistas, começam a fazer perguntas e a pessoa começa a escrever um romance paralelo, sobre o romance.

Ajudamos os escritores a explicar os romances?

Claro. Não sabemos se com explicações verdadeiras ou falsas, mas enfim… Estas duas personagens representam as duas atividades a que se dedica Millás: o jornalismo e a literatura. Uma representa uma possibilidade de escrever uma reportagem sobre a eutanásia e outro representa a possibilidade de escrever um romance sobre a loucura. O que acontece é que, com o passar dos dias, como costuma acontecer na vida, tudo se confunde. O que parecia ser um romance transforma-se numa reportagem, e o que parecia ser uma reportagem era afinal um romance. Mais uma vez, as fronteiras apagam-se. Bom, agora, com esta perspetiva posterior, depois de escrito o romance, posso dizer que estas duas personagens representam as duas atividades que são as de Millás, essa divisão permanente em que vive Millás.

Este romance parte de um facto real? Da impossibilidade de escrever um romance?

Sim. Parte de um momento em que Millás sente um certo cansaço pela ficção e no qual sucede uma coisa: nesse momento de seca criativa, recebe uma chamada telefónica da Associação Direito a Morrer, em que dizem: “Temos uma doente que vai recorrer à eutanásia dentro em pouco e que gostava de deixar testemunho deste processo. Gostaríamos que publicasses uma reportagem sobre ela.”

Tal como no livro.

Millás diz-lhes: “Acabo de publicar uma reportagem sobre a eutanásia”, porque Millás tinha publicado uma reportagem no El Pais, recentemente, e Millás diz que não se quer especializar no tema, ainda que seja a favor da eutanásia. “Então, vem pelo menos conhecê-la, porque ela admira-te muito, e seria um grande consolo para ela conhecer-te”, respondem-lhe. Começam a acontecer coisas estranhas de seguida. Em primeiro lugar, por acaso, a doente vive na casa em que viveu Millás quando era jovem.

Isso é verdade?

Porque não? Sim, é verdade. Para mais: nessa casa vive como hóspede uma mulher que alugou um quarto, que é a mulher louca, uma rapariga psicótica com delírios paranoicos com a língua. Millás fica fascinado.

Há mesmo uma rapariga real que se chama Júlia?

Pode ser, não?

Há ou não, não me vai contar?

Não. Bom, então, Millás começa a ir à casa com a desculpa de ver a doente, mas quer de facto ver a mulher louca. Aí é que se dá o Big Bang, o momento em que começa o romance, bom, aquilo a que chamamos romance, porque há também autobiografia e reportagem. Este é o arranque.

Quando fala de si, refere-se sempre a Millás na terceira pessoa. Sempre falou de si dessa forma?

Bom, refiro-me ao Millás do romance, à personagem. Sinto-me separado dele. Estou desdobrado. Em certo sentido, aquele Millás já não sou eu.

Já não estou a entender quando falamos da realidade física e quando falamos de criação literária.

Eu também não. É disso que trata o romance.

Já passou a fase da seca literária?

Não sei. De momento, escrevi este, e é curioso que tenha nascido do seu contrário, da impossibilidade de escrevê-lo.

Este é um tema caro aos escritores: o da página em branco.

Eu não tenho pânico da página em branco. Tenho mais medo da página escrita, porque normalmente está mais mal escrita do que aquilo que eu gostaria.

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‘A Mulher Louca’, Planeta, €16,95.

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