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Morrer de sorrir: os perigos fatais de ser a “boazinha” de serviço

Costuma dizer-se que o que não nos mata deixa-nos mais fortes, certo? Errado. Deixa-nos mais traumatizados, com tiques nevróticos no olho, a tremer como um pinscher com problemas cardíacos, além da gastrite, e com os músculos travados de dor e tensão.

Como o corpo é um mecanismo incrível, é bem orquestrado inevitavelmente com o uso e os costumes de alguém, ele vai pifar num ponto ou noutro. É uma máquina biológica espantosa, mas é um sistema que depende de outros sistemas para operar bem.

A energia bloqueada provoca doenças. As mais variadas doenças, provenientes de bloqueios orgânicos, provocados por bloqueios emocionais, por sua vez provocados pela mente…

Será que podemos aprender a trazer mais consciência para nossas próprias emoções e necessidades? Sim?

Então, fica desde já ciente do seguinte: reprimir a raiva, priorizar exclusivamente o dever e tentar (a todo o custo) não decepcionar os outros são as principais causas das doenças crónicas.

Leu bem. Os sintomas físicos são expressão de dinâmicas emocionais, conforme estuda a Psicossomática desde há muito. Mais recentemente, os estudos de ilustres investigadores nesta área, como o aclamado Dr. Gabor Maté (médico canadense, também terapeuta) colocam estas conclusões em evidência, nomeadamente no seu bestseller “The Myth of Normal: Trauma, Illness and Healing in a Toxic Culture”.

Ignorar ou suprimir como nos sentimos e o que precisamos acelera a nossa resposta ao stress, levando o nosso corpo aos processos de inflamação, a base de qualquer tipo de doença.

Por outro lado, a nossa necessidade de pertencermos aos nossos grupos (sejam eles familiares ou sociais) leva-nos a suprimir miseravelmente as nossas emoções, o que dá cabo de nós, ou não estivéssemos a declarar-nos guerra numa base diária quando, tantas vezes, parece que temos de escolher entre OU sermos autênticos OU pertencer.

Ser “boazinha” (diferente de se ser “boa” pessoa) e ter uma tendência (para não dizer compulsão) para buscar à força toda agradar os outros – embora seja aplaudido socialmente e seja geralmente reconhecido como um traço positivo – na verdade pode prejudicar a nossa saúde, tal como corroboram os estudos do Dr. Maté.

Sabe, querida leitora, calar uma emoção é um suicídio lento. A nossa fisiologia é inseparável da nossa existência social. E se neste texto conseguir fazê-la entender o porquê disso, ganhei o dia.

Quando digo “morrer de sorrir”, no título deste texto, não falo do aprazível “morrer de rir”, quando nos inebriamos de gargalhada saudável fruto da leveza ou do puro prazer, antes fosse! Não, pelo contrário. Refiro-me – literalmente – à probabilidade que certos perfis mais “agradadores” (também conhecidos como ‘people pleasers’ ou codependentes) têm em desenvolver doenças auto-imunes, como o cancro, segundo a ciência vem demonstrando.

Numa linha, convir aos outros sem limites é auto-destruição.

A investigação revista (em estudos longitudinais ao longo de mais de 30 anos) descobriu um padrão de traços de personalidade que se apresentam com mais frequência em pessoas com doenças crónicas. E são eles (preste atenção e veja se se identifica):

  • Preocupação automática e compulsiva com as necessidades emocionais dos outros, ignorando as próprias necessidades;
  • Identificação rígida com o papel social, dever e responsabilidade;
  • Hiper-responsabilidade excessiva e focada externamente, baseada na convicção de que é preciso justificar a própria existência fazendo e doando abnegadamente;
  • Repressão da raiva saudável e auto-protectora;
  • Internalização e acção sobre duas crenças centrais: “sou responsável por como as outras pessoas se sentem e nunca devo desapontar ninguém”.

Então e porque é que estas características e a sua notável prevalência nas personalidades de pessoas com doenças crónicas são tão frequentemente negligenciadas e passam de forma tão “despercebida”? Porque elas estão entre as “boas maneiras” de ser (especialmente atribuídas ao género feminino) mais normalizadas na nossa cultura. Coincidência o facto de serem as mulheres a população no mundo que mais padece de doenças auto-imunes? Uhm…dá que pensar.

Essas características nada têm a ver com vontade ou escolha consciente, importa perceber.

Ninguém acorda de manhã e decide: “Hoje irei colocar as necessidades do mundo inteiro em primeiro lugar, desconsiderando as minhas próprias” ou “Mal posso esperar para reprimir a minha raiva e frustração e, em vez disso, por a máscara de um rosto feliz e sorridente”. Também não nascemos com essas características – elas são padrões de enfrentamento ou adaptações que acabámos por desenvolver para preservar a nossa conexão com os outros, às vezes, à custa das nossas próprias vidas.

Desenvolvemos estas características para sermos aceita(o)s. Precisar do outro desde a infância, sentir em relação a ele impotência e extrema dependência, não ter recursos e palavras para nomear e entender o que sentimos: eis as condições básicas – estruturais e ‘trágicas’ – da necessidade de nos escondermos de nós, de nos segregarmos de nós mesma(o)s, e de arrastar tais defesas primárias pela vida fora.

Por termos que sobreviver (mais do que só física, mas emocional e psicologicamente), vamos deixando “para trás” da nossa percepção consciente muitas sensações, experiências, sentimentos. A vida, todavia, segue. O sentido que não obteve sentido fica à espera de ser sentido, compreendido justamente por ter significado impacto significativo, riscos de vida, de perda do amor do outro.

Precisamos dos vínculos para sobreviver, pois somos mamíferos de uma espécie tribal, preparados para a conexão, em conformidade com as necessidades e regras dos outros para “garantir” a nossa pertença nos grupos.

Mas também precisamos de autenticidade para nos mantermos saudáveis. Fomos projectados para sentir e agir de acordo com as emoções, especialmente as “negativas”. É o nosso sistema de alarme para sobreviver ao perigo.

Na nossa cultura, a raiva dos homens é tida como um sinal de força e a das mulheres é vista como um sinal de descontrolo. As mulheres são ensinadas desde meninas que a sua raiva é a coisa mais perigosa e destrutiva que carregam dentro de si, e aprendem isso através da rejeição familiar e social que sentem quando a demonstram.

Mas isso tem custos. Reprimir a raiva gasta uma energia psíquica danada. Imagina-se a tentar manter uma bola debaixo da água da piscina o dia inteiro?

Aprendemos que a raiva faz de nós pessoas agressivas e histéricas, arrogantes; e não assertivas, protectoras ou focadas. Aprendemos que o papá gosta da menina doce e que a mamã precisa que a gente facilite as cargas dela. Aprendemos a segurar de forma tão forte a bola debaixo de água que só quando o corpo permite ela escapa, e quando escapa vem com tudo e reforça o rótulo de agressivas e histéricas. Dá-lhe patologização (e muitas vezes medicalização) da raiva justa mas represada (e reprimida) da mulher.

E você, está a aprender a reconhecer, permitir e lidar com a sua raiva?

Mau humor, raiva, vergonha, ansiedade, culpa, tristeza – todas estas são respostas úteis para nos ajudar a enfrentar os desafios dos nossos ambientes específicos. Ter funções de protecção sensíveis e barulhentas, como emoções que soam como alarmes quando somos ameaçados, não é uma falha do projecto. É simplesmente um ‘design’ de sucesso.

E a verdade que ninguém lhe diz é que não há sentimentos bons ou maus… todos são importantes! O que pode ser negativo é a maneira como você expressa o sentimento.

Todas as nossas emoções agem como sinais, indicadores para corresponder às condições percebidas ao nosso redor. Isso parece mais óbvio com algumas emoções, tais como o medo, que faz gritar alertas de perigo. Mas outras experiências emocionais ainda mais subtis ajudam-nos a lidar com ameaças e recompensas pela sobrevivência. Por exemplo, o desconforto de um humor deprimido sinaliza que não há recompensas suficientes no nosso ambiente para compensar os riscos de estar lá, motivando-nos a buscar circunstâncias mais gratificantes ou conservar a nossa energia num local seguro até que as recompensas retornem.

A raiva também é uma resposta necessária para combater as desigualdades, as violações e o bloqueio das nossas necessidades. É a nossa ferramenta mais eficaz para mobilizar acções contra a injustiça. O maior obstáculo à justiça social não é a oposição acalorada, mas a apatia. E, ainda assim, a sociedade socializou muita(o)s de nós para suprimir a raiva.

Então quer saber por que raio muita(o)s de nós suprimem as emoções vitais?

A necessidade de pertencer aos nossos grupos leva-nos a suprimir esses sinais emocionais vitais, desarmando a nossa capacidade de nos proteger. Ainda mais problemático do que isso é que a supressão consciente das emoções aumenta a nossa resposta ao stress e leva a resultados terríveis para a saúde. Sabemos que o stress crónico, seja qual for sua origem, deixa o sistema nervoso instável, desprotegido e isso distorce o aparelho hormonal, prejudica a imunidade, promove inflamação e compromete o bem-estar físico e mental. E numerosos estudos mostram que um corpo preso numa resposta crónica ao stress permanece num estado inflamado, ou seja, irritado, tenso, altamente corrosivo para tudo quanto é célula, tecido, fibra ou órgão do nosso corpo.

Este estado é percursor de muitas doenças crónicas, como as doenças cardíacas, o cancro, as doenças auto-imunes, Alzheimer, depressão e muitas, muitas mais.

É claro que nenhuma pessoa é “apenas” a sua doença e, como antes disse, ninguém faz isso a si mesmo de propósito – não de forma consciente, deliberada ou culpabilizável.

Tenho uma reserva muito grande em culpabilizar alguém por ter uma doença como se ela fosse um sintoma indirecto de qualquer comportamento pessoal. Claro que em tudo o que fazemos e escolhemos na vida existe uma dose de responsabilidade (diferente de culpa) que nos compete assumir, porém, não há como responsabilizar alguém pelos seus pontos cegos.

 Existe beleza na maneira como eu vejo uma doença. A doença parece-me estar ao serviço da vida. Isto quer dizer que as doenças são um aviso para olhamos para a vida possível, o melhor dentro do pior cenário. Com essa perspectiva talvez não olhássemos com tanto desprezo para os impasses corporais.

A personalidade é uma adaptação. Assim sendo, o que chamamos de personalidade é muitas vezes uma mistura de traços genuínos e estilos de condicionamento diversos, adaptados, incluindo alguns que não refletem o nosso verdadeiro “Eu”, mas sim a perda dele.

Ao mesmo tempo, podemos trabalhar para desaprender certos padrões de comportamento, trazendo mais consciência para as nossas próprias emoções – sinais nos nossos corpos que apontam para as nossas necessidades –, em vez de ignorá-las como toda a “boazinha” automaticamente ao serviço dos outros (quem quer que eles sejam).

Talvez a verdadeira cura seja a nossa maior abertura para as verdades das nossas vidas, passadas e presentes. Depois de começarmos a perceber o suficiente, oportunidades reais de escolha começam a aparecer antes de “instantaneamente” trairmos os nossos verdadeiros desejos e necessidades. Quando isso acontece, podemos começar a sentir-nos capazes de fazer uma pausa no momento e dizer: “Hmm, estou a perceber que estou prestes a engolir mais um sapo ou que lá estou eu quase a abafar mais este sentimento ou pensamento. É mesmo isto que quero fazer? Existe alguma outra opção?”

O surgimento de novas escolhas no lugar das velhas dinâmicas pré-programadas é um sinal claro de que os nossos “Eus” autênticos estão “online”, vivos e pulsantes de novo.

Não cale, muito menos se cale a si própria(o). Quem cala consente, ou melhor, não sente… Mas o que a mente faz por não sentir o corpo tende a reflectir. A expressar, a prensar… a expor, para nos expormos a nós mesmos… Para nos pormos a nós mesmos. A quê? Nos pormos a sentir, a pensar. A existir.

Quem cala destrói-se, cala-se e caleja-se e os calos vão endurecendo, formando uma carapaça muitas vezes muito difícil de atravessar.

Ao deixarmos ‘falar’ a condição emocional adquirimos suporte para enfrentar e superar medos e limitações, trazendo a possibilidade de conduzir a sua vida com mais segurança e tranquilidade.

Sem dúvida, a parte mais difícil de deixar de ser refém das nossas próprias emoções é abrirmo-nos para senti-las. Porque elas doem. Elas causam incómodo. Elas trazem inúmeros desconfortos. E muitas vezes acreditamos que elas podem justamente gerar mais sentimentos de desconforto.

No entanto, não existe uma outra direcção que não seja a de sentir, fazendo a sua parte, ganhando consciência sobre cada pequena coisa que ainda a(o) prende, compreendendo, acolhendo, escolhendo-se (não se encolhendo) e aceitando-se (acertando-se) mais a si mesma(o) e ao que acontece (e estremece) no seu interior.

Muitas vezes é doloroso (mas suprimir-se também o é), todavia, este processo não precisa acontecer às cegas, de qualquer maneira e tampouco ser vivido sozinha(o).

As emoções são energia em movimento (e-movere), e se você não se apropria do que sente, essa energia não é canalizada para aquilo que ela se destina. A energia da raiva e da agressividade são a energia da primavera em acção: a energia do recomeço da vida e de uma nova fase.

Da próxima vez em que essa energia crescer dentro de si, lembre-se de respirar e criar espaço de observação para que você possa perceber a raiva enquanto energia dentro de si. Sem pensar em se livrar dela de alguma forma, reprimindo ou descontando-a em alguém. Apenas respire e perceba a energia. O que é que ela lhe pede?

Com as pessoas que me procuram com um pedido de ajuda, juntas, já atravessámos o mar alto, navegámos pela escuridão, pelas doenças, até encontrarmos (elas e, de uma certa forma, eu) a nossa luz, a saúde.

Nada pode ser tão recompensador e gratificante do que ajudar uma pessoa a reencontrar a harmonia, a paz, a plenitude, o entusiasmo, a curiosidade e o prazer de viver.

Sara Ferreira

https://www.facebook.com/apsicologasara

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