

Em cena desde 17 de julho, a peça Teoria King Kong surge para abordar temas que continuam a ser silenciados ou tratados com desconforto. Inserida no ciclo “Geografia do Género”, a que a Companhia de Teatro de Sintra – Chão de Oliva se tem dedicado este ano e que propõe desconstruir visões normativas sobre esta temática, esta adaptação do ensaio feminista da autora francesa Virginie Despentes dá voz a uma mulher que rejeita o papel de vítima e que desafia as convenções que moldam a feminilidade, a sexualidade e a liberdade.
Com encenação de Paula Pedregal e interpretação de Rita Loureiro, a LuxWoman esteve à conversa com com a atriz e a encenadora sobre a peça, que estará em cena até dia 3 de agosto na Casa de Teatro de Sintra.
Paula Pedregal
Encenadora
“Esta peça assume claramente uma posição política e ética ao dar voz a uma perspetiva feminina crua, honesta e que não pede desculpa”
Teoria King Kong é um texto poderoso. O que a motivou a levá-lo à cena neste momento em particular?
A nossa motivação vem da vontade de dar visibilidade a temas que continuam a ser silenciados ou tratados com desconforto. Vivemos tempos onde a intolerância e a violência, sobretudo contra as mulheres e contra quem foge ao status quo, parecem estar a ganhar força. Sentimos que não podíamos ficar em silêncio. A obra parte de uma experiência profundamente pessoal e violenta, mas transforma-se num manifesto político que nos obriga a questionar: porque é que estas estruturas de opressão continuam tão presentes? Como se perpetuam? E o que podemos fazer para enfrentá-las? Ao trazê-la para o palco, quisemos abrir espaço para esta reflexão coletiva, para olhar de frente para a violência estrutural que se instala diariamente na nossa vida.
Esta obra coloca questões essenciais sobre identidade, género e liberdade. O que a emocionou ou inquietou mais neste texto?
Talvez o sentimento de inconformismo. Também o espírito de luta. E essa ideia de que a mudança passa pela educação.
Por que razão considera importante que este texto seja ouvido hoje, em palco, por um público português?
Estamos a assistir, não só em Portugal como em todo o mundo, ao crescimento de discursos extremistas que ameaçam direitos fundamentais que julgávamos garantidos, especialmente no que toca à igualdade de género e à proteção de vítimas de violência. Infelizmente, continuamos a ser confrontados com episódios de violência extrema contra mulheres, e aquilo que nos choca não é apenas o crime em si, mas também a forma como tantas vezes é tratado pela sociedade com desresponsabilização ou mesmo com culpa atribuída às vítimas. Teoria King Kong não nos deixa fugir a estas realidades. A peça expõe, provoca e obriga-nos a pensar e é precisamente esse confronto que queremos levar ao público português.
Como foi o processo de adaptação do texto original de Virginie Despentes para a linguagem cénica?
Para mim, os ensaios representam uma oportunidade de experimentação artística e de autodescoberta como ser humano e como artista, naquilo que é a minha relação com os outros intervenientes e na relação com os materiais que estamos a trabalhar. A adaptação do texto original é sempre o grande desafio, embora a adaptação adiante muito do trabalho da encenação e das possibilidades da própria escrita cénica.
O processo implicou um confronto com as minhas próprias contradições internas e dilemas, relativamente aos assuntos e à forma como a Virginie os aborda, nomeadamente temas como a prostituição. Falar de assuntos delicados de uma forma tão crua… Para além destes assuntos surgiam as dúvidas: em que medida é que uma visão tão provocadora do feminismo podia interessar as pessoas (homens e mulheres)? De que forma é que era possível transpor para o palco uma obra em forma de ensaio, um manifesto, mas que é também uma biografia: a história da Virginie? Depois tratava-se de desmembrar um texto que segue uma lógica de pensamento, para lhe dar outra forma, sem desrespeitar o espírito da obra. Sacrificar partes do seu conteúdo, das ideias. E dar um sentido às escolhas feitas, de forma que traduzisse as nossas intenções. E depois de que forma as linguagens, como o vídeo, a música, a luz, a cenografia, podiam contribuir para outras camadas de leitura do espetáculo.
Porquê a escolha de Rita Loureiro para esta interpretação?
Porque a Rita é uma excelente atriz. Tem um espírito muito livre e partilha das ideias presentes na obra.
Este é um espetáculo que incomoda e provoca — mas também liberta. Que tipo de impacto esperam gerar nas mulheres (e nos homens) que o veem?
Queremos que este espetáculo toque nas feridas certas e que provoque desconforto, sim, mas que sirva também como motor de reflexão e transformação. Para nós, é essencial que tanto mulheres como homens saiam da sala a pensar sobre questões como género, corpo e sobre o silêncio que tantas vezes se instala à volta da violência. O teatro tem esta força incrível de criar espelhos, em que cada pessoa vê ali algo diferente, consoante o seu percurso ou as suas experiências.
Para si, o teatro é um espaço de resistência?
Sem dúvida. Para mim, o teatro é e sempre foi um lugar de resistência. Um espaço onde podemos levantar questões que muitas vezes são apagadas no dia a dia. Esta peça assume claramente uma posição política e ética ao dar voz a uma perspetiva feminina crua, honesta e que não pede desculpa. Em palco, temos a liberdade e a responsabilidade de desafiar convenções e questionar os papéis de género que nos foram impostos, além de expor as estruturas de poder que continuam a oprimir as mulheres. Por isso, o que procuramos com esta criação é, essencialmente, abrir caminho para outras formas de ver e estar no mundo.
Como mulher, o que foi mais transformador para si neste processo?
O confronto com a minha própria ideia do que é ser uma mulher livre. Transformou-me na medida em que me tornou mais forte e apta para fazer esse caminho.
A peça levanta a pergunta: “O que é ser mulher hoje?”. O que é para si ser mulher em 2025?
É sermos livres para fazer as nossas escolhas sem medos e em plena igualdade.
Que desejos tem para o futuro das mulheres no teatro e na sociedade? E que papel pode a arte ter nesse caminho?
Desejo que cada mulher consiga assumir as rédeas da sua vida sem medos, sem qualquer tipo de opressão, sem necessidade de corresponder a padrões impostos por uma sociedade machista, e muito violenta; em plena liberdade e igualdade de direitos. E que assuma e tome conta, cada vez mais, dos lugares que decidem os destinos da humanidade.
A arte ajuda a acordar consciências e deve contribuir para elevar os espíritos das mulheres, dos homens e de todes, nesse desígnio coletivo de construção de um mundo melhor para todos.
Rita Loureiro
Atriz
“Diria que não é uma peça confortável, mas essencial, nos dias de hoje para refletirmos sobre o que se passa”
Como surgiu o convite para fazer parte desta peça?
O Luís Santos, que já fazia parte da equipa criativa deste projeto no domínio do cenário dos figurinos, aconselhou-me à Paula para integrar este projeto e, posteriormente, ela contactou-me. Entretanto, trocámos algumas mensagens por WhatsApp. Ela falou-me da autora, a Virginie, e eu li o texto. Embora o texto ainda não estivesse fechado, investiguei um bocadinho sobre a Virginie e gostei bastante do livro, da postura dela e da forma como ela vive o seu feminismo. E embarquei na aventura.
Já conhecia esta autora Virginie Despentes?
Não, foi através deste convite que fiquei a conhecer este universo dela e estou muito feliz por ter entrado nele.
A Rita está sozinha em palco. Sentiu responsabilidade em dar voz a estas palavras?
Confesso que fazer um monólogo nunca foi uma coisa que me atraísse muito como atriz, porque gosto muito do jogo de contracena que se cria entre os atores. Mas, precisamente por causa dessa responsabilidade, e sendo este texto da natureza que é, é que me fez aceitar esse desafio. Pensei que se é para fazer um monólogo que seja um que tenha esta característica assim tão fora da caixa e tão impactante, sobretudo nos dias que correm. E isso foi das coisas que mais me atraiu, sim.
Como se preparou para fazer este monólogo?
Li coisas da Virginie, vi coisas sobre ela, falei com pessoas que conheço que são bem mais entendidas neste tema do feminismo do que eu. E, no fundo, depois foi só embarcar porque identifico-me muito com as palavras e com a postura da Virginie. No fundo foi só abraçar a minha condição feminina e a forma como eu a vivo, e como mulher de 56 anos hoje em dia, e mãe, e lançar-me nestas temáticas. Não precisei de fazer nenhuma espécie de lavagem ao cérebro.
Foi a primeira vez que trabalhou com a encenadora Paula Pedregal? Como foi?
Foi a primeira vez. A Paula também tirou o conservatório, tal como eu. Somos duas mulheres da mesma idade e com um percurso muito similar e foi desafiante, o que é bom. Porque em certas coisas não tínhamos a mesma opinião, mas isso são as dinâmicas do trabalho e desde que haja comunicação as coisas avançam e vão se reajustando.
A peça levanta a pergunta: “O que é ser mulher hoje?”. O que é para si ser mulher em 2025?
É difícil. Infelizmente ainda somos vítimas de castrações impostas moral e socialmente neste mundo de homens, destas sociedades patriarcais. Essa entidade feminina está constantemente a ser submetida a avaliações muito alicerçadas em valores e interesses masculinos. Portanto, não é de facto fácil ainda hoje e é chocante que não seja, porque já se levantaram muitas questões prementes ao longo de séculos e parece que o ser humano não tem capacidade para lidar com elas da melhor maneira. E hoje em dia parece que estamos a regredir novamente para um machismo tóxico, para uma revisão de valores que vai submeter as mulheres novamente, para um lugar de medo e de escrutínio constante e de diminuição, porque de facto eu acho que os homens têm uma grande sede de poder alicerçada em estupidez, medo e incompreensão.
Sente que esta peça vem na altura certa? Que é urgente falarmos sobre estes temas?
Absolutamente. Eu tenho uma filha de 20 anos e sinto que há uns anos para cá que há uma revolução de mentalidades que passa muito também por uma revolução de sexualidade que estava a ter lugar e que está constantemente. Não desapareceu. Ela está agora com contrarreformas que é o que acontece sempre, não é?! Há uma reforma e depois vem sempre uma contrarreforma. E penso que neste momento essa revolução, essa evolução, esse destruir de convenções e de dogmas está a regredir imenso. Porque há um discurso de extrema direita e de desumanização que se está a impor na cabeça das pessoas. Há uma desilusão muito grande na crença da própria humanidade. E na crença dos direitos humanos que estão a ser constantemente postos em causa e atropelados de uma forma que eu nem sei qualificar já. É chocante. Acho que as pessoas estão muito perdidas e muito facilmente se agarram a meias-verdades ou a campanhas populistas e falaciosas.
Embora esta peça seja mais direcionada ao público feminino, a ideia é que seja vista por todos, certo?
Claro que sim. É escrita por uma mulher, interpretada por uma mulher, encenada por uma mulher, mas o que comunica não é absolutamente só dirigido às mulheres. Pelo contrário, é mesmo para toda a gente.
É isso que tem verificado desde que a peça estreou?
Absolutamente. Tem sido muitíssimo gratificante para mim estar a fazer isto na Casa Teatro de Sintra, com o Chão de Oliva, precisamente porque tenho acesso a um público muito diversificado a nível etário e de género. E isso é muito bonito de se ver. Sinto-me a fazer serviço público e isso deixa-me muito feliz enquanto atriz.
No fundo, o teatro é uma arma de transformação social…
Absolutamente. O teatro, a poesia, o cinema, a pintura, tudo o que é arte, é uma arma de pensamento e de reflexão. É para isso que serve. Entretendo o mais possível, claro. As pessoas, quando vão a um museu, a uma sala de espetáculos, estão a dispor uma parte do seu tempo para serem transportadas para outro lugar, não é? E serem impulsionadas para outras emoções e questões. Mas é uma arma que eu espero que mude mentalidades, que faça com que as pessoas reflitam sobre si próprias e sobre os outros.
Sente que ao fazer este monólogo alguma coisa mudou em si?
Acho que isto veio agudizar toda uma série de questões que eu já tinha desenvolvido através do meu percurso, enquanto aqui ando, como a importância de a mulher se valorizar e de se considerar bela e completa, de ter a sua autonomia e a sua independência.
Em cena até dia 3 de agosto, porque devemos assistir a esta peça?
Diria que há verdades – cruas, algumas difíceis de ouvir, outras muito simples e muito diretas – que vale a pena serem ouvidas, vivenciadas e partilhadas. Diria que não é uma peça confortável, mas essencial, nos dias de hoje para refletirmos sobre o que se passa.