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Carmen Garcia, lutar pela diferença! #Testemunho

É a cuidar dos outros que se sente feliz. Mas é a cuidar dos seus que vive os seus dias em plenitude. Mãe de dois rapazes, Pedro, com 4 anos, e João, com 2, é autora do blog ‘A Mãe Imperfeita’. ‘Uma Lição de Amor’ é o nome do livro que acaba de lançar, um projeto onde o apelo à diferença tem explicação na surdez profunda bilateral do filho mais velho e que surge na base de uma promessa: “enquanto cá estiver, nunca deixarei de lutar pelos direitos do meu filho”

É enfermeira há onze anos. Poder cuidar de pessoas foi a missão que se sobrepôs ao objetivo inicial: ser médica. “Nunca quis ser enfermeira. Não era nada uma opção que considerasse. Entretanto, acabei por ir parar à enfermagem por um azar do destino. Eu queria Medicina e não entrei”, diz, acrescentando: “a ideia era ir fazendo enfermagem e, ao mesmo tempo, estudar novamente para os exames nacionais para, no final do primeiro ano, voltar a concorrer. Só que depois aconteceu aquilo que eu não esperava, de todo: começar a gostar demasiado do curso. Comecei a gostar tanto de enfermagem e a ser tão feliz no curso, que depois, para desespero de muita gente que me conhecia, já não quis repetir os exames. E decidi ficar enfermeira.” Mais do que tratar, Carmen Garcia queria cuidar dos outros. Talvez por isso a vida lhe tenha dado outra missão. Desta feita, mais difícil e com maiores desafios. “Chorei toda a noite quando me apercebi que o meu filho nunca iria ouvir o som da chuva”, confidencia, relembrando o dia em que recebeu, com o marido, o diagnóstico de surdez profunda bilateral do Pedro, filho mais velho. “Fui a pé do berço onde ele estava e prometi-lhe que, enquanto vivesse, enquanto respirasse, enquanto tivesse força, que a minha vida ia ser dedicada a fazer aquilo que eu pudesse para que ele, e outros meninos como ele, tivessem a vida mais facilitada. Prometi-lhe que não ia vacilar nem desistir”. E nunca desistiu. Três dias depois de receber o diagnóstico do filho, a vida oferece-lhe mais um desafio. “Descubro que estou grávida e começo logo a perder sangue, disparatadamente. Fui logo para repouso. E, então, vejo-me em repouso absoluto numa cama, sem me poder mexer, com uma criança de um ano que tinha acabado de saber que era surda profunda”, diz.

‘A Mãe Imperfeita’, é o nome do blog que surge como resultado de uma fase de vida conturbada., como explica: “passava muito tempo nas redes sociais e na internet e só via vidas perfeitas, fotografias de viagens, blogs com filhos muito bonitos, todos vestidos de igual… e a minha vida era uma confusão! Não sentia nada daquelas coisas, sentia-me, às vezes, até, zangada e achei que fazia falta alguém falar das coisas como elas eram. Era quase o lado B da maternidade ou o outro lado, o darkside, que também existe!”

Com um livro já editado, ‘Os 1º Mandamentos de uma Mãe Imperfeita’, de 2018, acaba de lançar ‘Uma Lição de Amor’, um livro que “é para crianças mas que é, essencialmente, para pôr os pais a falarem com as crianças sobre a diferença e para fazer os pais refletirem um bocadinho, também.”

É enfermeira de Cuidados Intensivos no Hospital do Espírito Santo, de Évora. Porquê a enfermagem?

Eu nunca quis ser enfermeira. Não era nada uma opção que considerasse. Entretanto, acabei por ir parar à enfermagem por um azar do destino. Eu queria Medicina e não entrei por mesmo muito pouco… Estava convicta que entrava, até à data das colocações. Quando fui preencher a folha de candidatura, coloquei Medicina nas 5 primeiras opções e, na sexta, pus enfermagem, porque pensei: ‘não vá haver um azar qualquer!’ Mas nunca pensando que esse azar fosse mesmo acontecer! E aconteceu, na verdade. A ideia era ir fazendo enfermagem e, ao mesmo tempo, estudar novamente para os exames nacionais para, no final do primeiro ano, voltar a concorrer. Só que depois aconteceu aquilo que não esperava, de todo: começar a gostar demasiado do curso. Comecei a gostar tanto de enfermagem e a ser tão feliz no curso, que, depois, para desespero de muita gente que me conhecia, já não quis repetir os exames. E decidi ficar enfermeira.

O que a fez gostar tanto do curso?

Quando entrei, o curso estava estruturado de uma maneira um bocadinho diferente do que está agora. No primeiro ano, tivemos logo um estágio, um ensino clínico. Era num centro de saúde, mas eu calhei num centro de saúde que tinha acoplada uma UAI – Unidade de Apoio Integrado, que agora é uma Unidade de Cuidados Continuados. Nós fazíamos muitos turnos na Unidade de Cuidados Continuados e eu percebi que gostava – mais do que de curar ou de tratar – de cuidar das pessoas. Eu percebi isso com esses doentes da UCC, com essas pessoas e depois já não consegui mudar.

Acaba por ser essa a missão da enfermagem? Deve ser esse o sentimento para se ser enfermeiro/a?

Acho que sim. Apesar de achar que essa questão da vocação, de sermos uns anjos sem asas, etc, nada disso é verdade! A enfermagem é uma profissão que tem um corpo teórico próprio e que exige que se estude muito. Enfermeiros que estudam pouco ou que têm poucos conhecimentos teóricos são maus enfermeiros. Mas, obviamente, não é possível ser um bom enfermeiro se não se for um cuidador. Todos os enfermeiros são cuidadores. E eu noto isso mesmo nas outras vertentes da minha vida: sou cuidadora de toda a gente. Acho que isso é uma característica muito da enfermagem, nós cuidamos de quem está à nossa volta.

É essa a essência de se ser enfermeiro, então?

Sim. Depois, claro, há uma parte em que se mistura tudo: a nossa vida fora da enfermagem com a enfermagem. Aliás, a enfermagem tem uma coisa terrível: é muito difícil fecharmos a porta do hospital e não trazermos os doentes connosco, para casa. Quem é enfermeiro vive quase 24 horas por dia a enfermagem, porque é difícil desligarmo-nos das pessoas de quem cuidamos, não é fácil.

Ficam a pensar sempre nas pessoas e nos casos que têm?

Sim. Há sempre situações mais graves. No meu caso, em que o meu marido também é enfermeiro, discutíamos muitas vezes as situações, um com o outro. Situações do serviço dele, das saídas dele na VMER – Viatura de Emergência Médica, dos meus doentes nos Cuidados Intensivos… Às vezes é difícil fazer essa gestão. E depois há outra questão mais relacionada em concreto com os Cuidados Intensivos: não são internamentos curtos, normalmente as pessoas não entram num dia para saírem no outro. E é uma toda situação em que temos as famílias… ninguém quer ter familiares internados nos cuidados intensivos. Acabamos por estabelecer uma relação muito forte com as famílias, porque habitualmente os doentes estão sedados, não respondem e nós estamos ali, sempre disponíveis e tentamos muito fazer essa ponte. E às vezes trazemos, não são só os doentes, mas também as suas famílias para casa! É tramado! Começamos a conhecer as histórias das pessoas. Eu lembro-me de uma situação, na qual andei a pensar imenso tempo, de uma senhora que tinha três filhos, que morreu e que depois foi para dadora de órgãos. O filho mais novo não queria aceitar a morte cerebral e o facto da mãe ser dadora de órgãos, aquilo foi muito mau! Andei semanas com aquela família e com aquele miúdo às costas e a pensar: ‘como é que eles estarão?’, ‘Como é que estarão a reagir?’, ‘Será que o miúdo já está melhor?’, ‘Será que já o levaram a um psicólogo?’

Tudo isso traz algum desgaste psicológico?

Traz muito! A enfermagem é uma profissão absolutamente desgastante! E muito desgastante também fisicamente, ao contrário do que muita gente pensa. Não andamos ali nos hospitais a fazer pensos e a dar injeções. Nós posicionamos as pessoas, levantamo-las… E, por muito corretas que sejam as técnicas, fazemos muita força física. Mas o desgaste psicológico, sem dúvida, é muito complicado. As outras pessoas que não estão dentro dos hospitais, que não são profissionais de saúde, conseguem arrumar a mortalidade ou a morte, num cantinho da cabeça, está fechada num compartimento. Habitualmente, só pensamos na morte quando somos confrontados com ela. No nosso caso, dos enfermeiros, dos profissionais de saúde, quem trabalha especialmente numa realidade como a minha, do UCI, a morte é o nosso dia-a-dia. No hospital, somos diariamente e várias vezes ao dia, infelizmente, confrontados com a finitude e com a nossa própria mortalidade e isso desgasta… O cemitério que nós todos temos às costas, é desgastante.

Acrescenta um peso extra ao dia-a-dia?

Sim, começa a acumular, começa a ser um cansaço acumulado. Eu sinto muito isso. Eu vou deixar agora o hospital por isso. Sinto que já vi demais, já vi muito mais coisas do que queria ter visto. Aquele caminhar na vida tão bonito e tão inocente, perde-se todo dentro dos hospitais. Vou ficar até ao final do ano no hospital mas depois vou sair.

O seu marido também é profissional de saúde. Trabalha, igualmente, no Hospital de Évora?

É também enfermeiro lá, sim.

Conheceu-o lá?

Conheci-o lá, sim. [risos] Trabalhávamos juntos na Cardiologia, na Unidade de Cuidados Intensivos Coronários, e depois eu mudei para a unidade polivalente, ele manteve-se na unidade coronária. Continua enfermeiro lá, também. E é enfermeiro na VMER.

Como se consegue em termos da relação fazer uma gestão equilibrada?

Mal… Não se consegue! [risos] Não dá para dourar esta pílula, é algo que funciona mal… Agora funciona melhor, porque eu também vou deixar o hospital. É o cansaço, por um lado. É a falta de reconhecimento, por outro. Mas também é para dar alguma qualidade de vida aos meus filhos.

Porque depois têm de ajustar os turnos?

Claro. E com esta questão do Covid temos turnos de 12 horas. Isto é incomportável. Os miúdos entram na creche, a creche fecha e nós continuamos no hospital. Eu agora não estou a trabalhar, porque estou de licença de apoio à família, mas o meu vínculo mantém-se. Nós chegámos a um ponto, quando estávamos os dois a trabalhar, em que eu tinha de levar os miúdos no carro para trocar com ele, ali, no carro… Porque estava um a sair e outro a entrar… É muito complicado. Nós, como casal, sofremos imenso com isto, temos muito pouco tempo juntos e muito pouco tempo de qualidade.

O que se pode fazer?

Às vezes é aceitar um bocadinho que as coisas são como são. É difícil dourar isto, na verdade. Eu gostava muito de poder dar uma perspetiva boa, mas não a tenho. Às vezes é aceitar que é assim e que na nossa realidade só assim pode funcionar.

Portugal é diferente dos outros países me termos da carreira na Enfermagem?

Acho que há uma parte que é muito semelhante em todos, todos aqueles que eu tenho conhecimento, pelo menos. Eu conheço, por exemplo, um casal de enfermeiros italianos, em que também é um bocado assim, ela tem o horário fixo das manhãs e ele das tardes. A única diferença, objetivamente, é o facto deles terem, noutros países, uma carreira e de terem um reconhecimento que nós aqui não temos.

Aqui não há qualquer reconhecimento?

Eu sou enfermeira há 11 anos e continuo no primeiro escalão da carreira, no qual só fui colocada no governo de Passos Coelho, porque, antes disso, como tenho um contrato individual de trabalho, estava à margem. É assim que funciona… Posso dizer que a minha última folha de vencimento numa Unidade de Cuidados Intensivos – num sítio onde não se pode errar, onde há uma responsabilidade elevadíssima – foi de 960 euros! Porque eu deixei de fazer noites e, não fazendo noites, tendo um horário mais fixo por causa dos miúdos, trouxe 960 euros para casa. Não vale a pena! Com o desgaste físico e emocional que eu tenho ali dentro… não vale a pena.

Em Inglaterra, por exemplo, é diferente?

Sim, em Inglaterra é ótimo porque eles têm ótimas perspetivas de carreira: evoluem, têm prémios por mérito, têm imensa facilidade em progredir dentro da carreira com as formações que vão fazendo. Aqui não há nada disso! Podem fazer-se as formações que se quiserem que não se passa da ‘cepa torta’, como se costuma dizer.

E vai sair por tudo isso?

Sim, eu vou tentar conciliar. Porque depois é um bichinho, isto da enfermagem. É muito difícil eliminá-lo e eu não quero, de todo, perder a ligação à prática e à enfermagem. Vou tentar encontrar um part time, fora do hospital. Vou continuar a cuidar.

Tem alguma proposta em carteira?

Tenho algumas propostas que estou a analisar, mas essencialmente eu quero poder continuar a cuidar de alguém, continuar a cuidar de pessoas. Eu já tinha esta decisão mais ou menos pensada, mas o que disparou isto foi um episódio particular. No dia 6 de janeiro de 2020, eu estava a fazer o turno da manhã e o meu avô estava internado no hospital. Ele ligou-me no dia 20 de dezembro porque estava muito mal disposto e eu não liguei muito. Mas depois acabei por falar com uma colega que estava no hospital, que lhe disse para ir à Urgência. O meu avô ficou, entretanto, internado e fez exames durante 15 dias. Percebeu-se que tinha um cancro do pulmão metastizado para os ossos e para o fígado e pronto… aquilo foi uma coisa muito rápida. Ele foi internado dia 20 de dezembro e no dia 6 já não estava vivo… No dia 6, falei com uma colega e ela disse-me: ‘olha, ele piorou muito durante a noite, está mal, está a chamar-te…’ E eu pensei: ‘vou só ver o meu doente e vou para perto dele’. A minha colega enviou-me, entretanto, uma mensagem a dizer: ‘é melhor vires!’ Fui ver o meu doente, para ver se estava tudo bem, e comecei a ouvir um barulho. O meu doente estava ventilado e sedado, mas eu percebi que nos tubos orotraqueais o balãozinho chamado cuff estava roto. A única solução era trocar o tubo. Isso é um ato médico mas tem de ser feito com um enfermeiro. Eu fui chamar o médico e disse que tínhamos de fazer aquilo rápido porque o meu avô estava a morrer lá em cima. E ele disse-me que íamos fazer rápido. Nunca achando que não fosse chegar a tempo de ver o meu avô, eu continuava: ‘tenho de me ir despedir do meu avô, porque eu acho que ele está a morrer lá em cima’, já muito chorosa… E até foi rápido. Eu preparei o material e, em dez minutos, tínhamos o tubo trocado e o doente estável. Só que, quando cheguei ao quarto do meu avô, a minha colega só me disse: ‘ele acabou de morrer’. E o que pensei logo foi: ‘ele morreu sozinho. Porque eu estava, mais uma vez, como sempre na minha vida, a cuidar de outros, a deixar os meus para cuidar dos outros’. E prometi que não queria fazer mais isso, não queria deixar, por exemplo, os meus filhos na noite de Natal para ir cuidar dos filhos dos outros ou para cuidar dos outros… Acho que agora é a minha vez de ser um bocadinho egoísta, não quero mais isto. São sempre os outros em detrimento dos meus e eu não quero mais isso para a minha vida.

‘A Mãe Imperfeita’ é o nome do blog que, entretanto, criou. Como nasceu o blog?

Eu tinha acabado de saber que o Pedro era surdo. Tinha sabido numa quinta-feira que o Pedro era surdo e no domingo, dia 17 de dezembro, soube que estava grávida do João! Com três dias de diferença! Foi uma gravidez completamente inesperada, não foi programada. A surdez do Pedro, eu sabia que era um longo caminho que tínhamos de percorrer e, de repente, descubro que estou grávida e começo logo a perder sangue, disparatadamente. Fui logo para repouso. E, então, vejo-me em repouso absoluto numa cama, sem me poder mexer, com uma criança de um ano que tinha acabado de saber que era surda profunda. Fechada em casa e deitada, passava muito tempo nas redes sociais e na internet e só via vidas perfeitas, fotografias de viagens, aqueles blogs com filhos muito bonitos, todos vestidos de igual… E a minha vida era uma confusão! Não sentia nada daquelas coisas, sentia-me, às vezes,, até zangada e achei que fazia falta alguém falar das coisas como elas eram. Era quase o lado B da maternidade ou o outro lado, o darkside, que também existe!

Acabou por ter logo bastante feedback?

Sim. Eu sempre achei que ia estar a escrever para as minhas amigas, só as convidei a elas – convidei 20 amigas – e depois, de repente, ao fim de uns dias tinha mil seguidores! Nunca pedi likes nem nunca fiz posts patrocinados, nunca pedi para partilharem nada… Não faço isso. Desde o primeiro dia que é igual: escrevo o que me apetece e como me apetece, não programo nada. Só que a coisa depois descontrolaram-se muito e hoje são 100 mil seguidores!

O foco continua a ser sempre falar sobre o dia-a-dia, abordando a diferença e a inclusão?

A minha página, claro, anda muito à volta da inclusão porque o Pedro é surdo. Eu sou mãe de um menino surdo profundo e, portanto, a promessa que eu fiz ao meu filho foi que, até ao meu último suspiro, até ao último dia em que eu aqui estiver, ia lutar pelos direitos dele e de todos os que são como ele, de todos os que têm diferenças. Decidi fazer sempre isto e assumir esta forma de luta, que sempre foi muito clara. Gosto de ‘chamar os bois pelos nomes’, não tenho medo nenhum da palavra ‘deficiência’, nem me choca. Acho que as palavras têm a conotação que nós lhes damos e o que eu quero é que um dia o meu filho, se alguém disser: ‘oh deficiente!’, responda: ‘sou sim e então?’ Não quero que ele tenha medo da palavra. Uma coisa que me irrita profundamente, por exemplo, é que alguém diga: ‘porque é que não deixas crescer mais o cabelinho para tapar o implante?’ Não tenho que tapar! Ele é surdo, usa um implante e eu não tenho de tapar nada! Não estou a incomodar ninguém, nem a ele nem aos outros. Então, sim, eu falo de muitas coisas no blog, falo de disparates, tenho brincadeiras, falo de coisas mais sérias, mas a inclusão é um tema sempre transversal. E tento usar as minhas redes sociais para sensibilizar as pessoas para isso, para a diferença.

Como se originou a surdez no Pedro?

A surdez do Pedro, ao que tudo indica, é consequência de um parto. Nós tivemos um parto muito difícil. Foi um parto onde foram feitas, depois de uma epidural desligada, depois de trinta e tal horas de indução, três tentativas de ventosas e uns fórceps… Depois, uma manobra de ?? que me fez uma fissura em quatro costelas. Acabámos numa cesariana emergente com o bebé já em sofrimento… Foi terrível! Foi um parto mesmo muito duro. Ao que tudo indica, a surdez é uma consequência de tudo isto.

Recebeu o diagnóstico de surdez do Pedro e seguiram-se desafios grandes?

Foi difícil. Ele chumbou logo no rastreio auditivo à nascença, portanto, houve sempre aquela suspeita… Podiam ser ainda restos do parto, líquido e essas coisas, mas depois ele voltou a repetir os testes, voltou a chumbar e por aí em diante. Durante um ano, andámos a fazer testes, fez cirurgia para colocar os tubinhos, para ver se era do ouvido médio, mas, no fundo, fomo-nos sempre mentalizando. E em casa testávamos… Eu lembro-me de uma vez deixar cair uma lata, ele estava a dormir e nem se mexeu! Ou, quando já era mais velhinho e já sentava, gostava de ver o movimento do Panda e os Caricas e batia palminhas, muito contente… Eu tinha aquilo sempre super alto e, quando tirava o som, ele continuava a bater palmas exatamente com a mesma alegria. Acho que a única coisa para a qual não estava preparada era para ser um grau tão profundo de surdez, eu achava que era uma coisa em que ele metia as próteses e pronto… Mas, de facto, não foi. Quando a médica disse que o Pedro era surdo profundo bilateral, eu respirei fundo, fiz o melhor que pude para me aguentar ali e não falei mais com o meu marido sobre isso… Vínhamos os dois a fazer o seu processo de aceitação… Mas depois, à noite, estava deitada na cama e ele também – devíamos estar os dois acordados, não sei, estava cada um virado para seu lado – e começou a chover imenso… De repente, bateu-me uma coisa e pensei: ‘o meu filho nunca vai ouvir o som da chuva!’ E foi muito duro! Chorei a noite toda, não consegui dormir. De madrugada levantei-me – porque não conseguia estar mais na cama, não parava de chorar – e fui a pé do berço onde ele estava. Prometi-lhe que, enquanto vivesse, enquanto respirasse, enquanto tivesse força, a minha vida ia ser dedicada a fazer aquilo que pudesse para que ele – e outros meninos como ele – tivessem a vida mais facilitada, prometi-lhe que não ia vacilar nem desistir. Na verdade, o que eu fiz não foi grande coisa, mas acho que foi mais me tranquilizar a mim.

A segunda gravidez correu bem?

Não, correu super mal! Mas o bebé nasceu bem. Tive um diagnóstico muito precoce de placenta acreta, que é quando a nossa placenta se comporta como um tumor e começa a invadir os órgãos adjacentes, foi um sarilho. Às 14 semanas, na consulta de alto risco, perguntaram-me se queria abortar. Explicaram-me todos os riscos que, eu disse que não queria, porque o bebe estava bem. Tínhamos feito a eco de rastreio do primeiro trimestre, o miúdo estava bem, eu tinha ouvido o coraçãozinho e não fui capaz… Não sei se foi coragem ou estupidez, mas a verdade é que depois correu tudo bem. Foi uma gravidez muito difícil, até ao fim, com muitos exames, muito repouso, muito tempo na cama, mas que, felizmente, correu bem. O João nasceu com uma cesariana programada. Nasceu ótimo e continua ótimo, felizmente!

Que desafios diários traz a surdez num filho?

Nós temos uma vantagem grande por vivermos numa aldeia muito pequenina do Alentejo. A onde ele está, que agora é pré-escolar, tem um ambiente muito familiar, toda a gente se conhece, é uma comunidade. O Pedro, nesse sentido, tem muita sorte porque está muito bem rodeado e tem uma educadora muito boa. Felizmente, nós conseguimos uma coisa que muitos pais têm muita dificuldade: pelo menos duas vezes por semana fazemos terapia no hospital, gratuitamente. Mas a surdez é uma coisa estupidamente cara! Antes de colocarmos o implante no Pedro, ele teve de testar umas próteses e tivemos de pagar 8 mil euros. Depois, a prótese não funcionou e tivemos de partir para implante. No Serviço Nacional de Saúde não é possível escolher o implante que é colocado e quisemos escolher o do Pedro. Quisemos escolhar, também, uma empresa que nos garantisse uma melhor assistência técnica e um implante, esteticamente, que fosse menos agressivo e com algumas funcionalidades que outros não têm. Com a cirurgia e com tudo contabilizado, o implante ficou em cerca de 30 mil euros! E mais… O processador novo para o implante dele, que saiu em 2019 custa 11 mil euros! Ninguém tem noção de quanto custa uma surdez! E em pilhas! As pilhas do implante são caras, a terapia que não fazemos no hospital, a que é feita fora, é cara, é tudo caro!


E não há apoios do Estado?

O Estado põe implantes, mas é uma luta… Por exemplo, os miúdos têm um implante que até pode ser do Estado, mas parte-se um cabo do implante que custa mil euros e já têm de ser as famílias a assumir esse custo, o Estado não assume. Portanto, eles colocam os implantes mas não assumem manutenção nem reparação nem coisa nenhuma. E estamos a falar de danos que não são de 20 euros.

É uma luta constante?

Sim. E depois há outras questões… Por exemplo, todos os dias, eu trabalho com o Pedro em casa, fazemos um bloco de 30 a 40 minutos de trabalho estruturado, todos os dias. Acho que lhe devo dar todas as ferramentas possíveis para comunicar, portanto, fazemos esse trabalho todos os dias. Ter um filho surdo dá muito trabalho e os apoios são muito poucos, na verdade.

E a profissão dos pais não ajuda?

Claro! Essa foi a primeira grande razão que me levou a querer sair do hospital, a maior de todas. As outras também foram fatores importantes e a morte do meu avô foi a que me fez dar realmente o salto, mas a primeira grande razão foram os meus filhos e, especialmente, o Pedro, por isto, porque, como é que o levamos à terapia da fala, com os dois a trabalhar? Como é que consigo trabalhar diariamente blocos com o meu filho? Não é fácil… E ninguém tem noção, de quanto custa a surdez, do trabalho que é feito…

Uma das suas grandes lutas é pela aceitação da diferença. Em Portugal não há aceitação dessa diferença?

Acho que começamos a fazer alguma coisa na diferença visível, apesar de haver sempre aquelas pessoas que não o fazem, mas começamos a ter mais cuidado em não deixarmos, por exemplo, o carro em cima do passeio porque pode vir alguém em cadeira de rodas, de não estacionarmos no lugar dos doentes motores, etc. O nosso grande problema continua a ser a falta de tolerância para a diferença que não se vê. Eu costumo dar o exemplo do filho de uma amiga minha que tem uma hiperatividade medicada e mesmo assim é de difícil controlo. Ela organizou uma festa de anos incrível para ele, convidou os 24 meninos da sala… e apareceram duas crianças, sendo que uma delas, inclusive, disse: ‘só vim porque a minha mãe me obrigou porque, eu nem sequer gosto de brincar com ele!’ E isto é terrível, porque, se calhar, aqueles pais, em casa, nunca explicaram que aquele menino tem um problema. Porque, quando a deficiência não se vê, perdemos um bocadinho a capacidade de explicarmos as coisas e acho que há muito trabalho a fazer nesse sentido em Portugal, mesmo muito!

Pode começar por onde?

O que eu mais defendo é que a inclusão tem de começar em casa. A primeira coisa que nós temos de fazer é aceitarmos os nossos filhos, porque se, não os aceitarmos e fingirmos apenas que aceitamos, eles nunca se vão aceitar a eles próprios e não podemos pedir aos outros que os aceitem. Quando eu vejo pais que fogem da palavra ‘surdez’ ou ‘deficiência’ ou que não assumem o problema frontalmente, acho que aquelas crianças nunca vão crescer a aceitar-se porque percebem que os próprios pais não os aceitam. Portanto, os pais das crianças com deficiência têm de ser os primeiros agentes da inclusão. Depois disso, têm de ser todos os pais, porque as crianças aceitam muito mais naturalmente a diferença do que nós. Eu lembro-me sempre do filho de uma amiga minha, em que eles vieram a minha casa numa era pré-covid, logo quando o Pedro tinha posto o implante. O miúdo foi à casa de banho com a mãe e disse: ‘oh mãe, eu posso ter um implante como o do Pedro?’ Porque ele achava que aquilo era uma coisa de super-herói. Este livro que escrevi é para crianças mas é, essencialmente, para pôr os pais a falarem com as crianças sobre o assunto e para fazer os pais refletirem um bocadinho também porque as crianças aceitam a diferença muito mais naturalmente do que os adultos e, às vezes, somos nós, com os nossos próprios preconceitos, que os passamos aos nossos filhos.

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