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Corações em cativeiro

Amor. Essa palavra “que me mata / me corta como uma faca”, como diria o outro senhor que nos dá música; palavra mágica que nos faz suspirar, sonhar e, muitas vezes, confundir.

Uma palavra tão usada, mas tão incompreendida. Aprendemos desde cedo – especialmente nós, mulheres – que amor deve ser uma fusão, uma entrega, um perder-se no outro. Crescemos a acreditar que o verdadeiro amor exige ciúmes, exige provas de lealdade e até uma dose de controlo e manipulação. Quantas de nós não foram educadas a amar como quem arrenda a própria identidade? A viver um amor despersonalizante, sufocante, sem limites nem fronteiras?

Mas essa rendição total, sem termos, não é amor; é a receita perfeita para adoecermos e perdermos quem somos, ao desbarato. Quantas ‘paixões’ assassinas vemos por aí? Quantas pessoas perdidas em relacionamentos tóxicos e abusivos vejo eu por aqui?…

E ainda assim, continuamos a confundir este padrão com amor, enquanto deixamos um “elefante gigante” crescer na sala de estar das nossas vidas – um elefante de inseguranças e expectativas silenciosas. Quantas vezes optamos por fantasias e ilusões em vez de uma conversa honesta? Quantas vezes o “eu” desaparece em nome do “nós”, sem notar que o outro já não está lá? Se, ao invés de criarmos teorias mirabolantes que nos levam ao abismo da infelicidade, simplesmente falássemos sobre as nossas angústias, com sinceridade e menos ataques?

Acreditamos que amar é sinónimo de ciúmes, desconfiança, controle e joguinhos de poder. E o resultado? Relações mais parecidas com uma montanha-russa emocional do que com um retemperante passeio na barca dos amantes.

No fundo, o que confundimos com amor é muitas vezes um grito desesperado por atenção. Amar-se, respeitar-se e valorizar-se são as bases reais do amor. Só quando nos sentimos inteiros, prontos para amar a nós mesmos, podemos abrir espaço para amar os outros de forma saudável.

Um dos sinais mais fortes de saúde mental é a capacidade de estar só e de se sentir inteiro(a) nessa solitude. Quando conseguimos estar bem connosco mesmo(a)s, a “necessidade” compulsiva de preencher o vazio com outra pessoa perde força, deixando de ser desculpa para nos mantermos em relações que nos adoecem. Saber estar só é a prova de que não precisamos de nos dissolver em más companhias para sentir que existimos, nem de pagar o preço da nossa dignidade para ter companhia. Quem se sente bem na própria pele não entra em qualquer relação por medo do silêncio ou por falta de algo melhor. Pelo contrário: é essa segurança que abre o espaço para uma relação verdadeira, em que duas pessoas se encontram sem expectativas irreais, sem pressas e sem jogos de sobrevivência emocional.

É nesse contexto que a força invisível do amor se revela, frequentemente durante um processo psicoterapêutico bem-sucedido. Nesse espaço seguro, podemos descascar as camadas de ilusões, revelando o que realmente significa “amar” e “ser amado(a)”. A história que se segue é um retrato desse processo.

Liliana, um nome fictício, é uma jovem de Aveiro que se muda para Lisboa em busca de uma nova vida após aceitar um emprego promissor. Assim que chega, o que sente não é apenas a excitação da novidade, mas uma estranha solidão. Não demora até que se sinta atraída por um colega, um príncipe encantado num cavalo branco… ou talvez apenas um homem simpático. A paixão aflora e Liliana, que antes era tímida, inicia um jogo de sedução. Mas o que se revela é um jogo onde a única coisa que se ganha é a desilusão.

Ele era amável, acolhedor, mas sempre cordial. Nada que sugerisse reciprocidade ou interesse romântico. Contudo, as fantasias de Liliana cresceram, e na sua cabeça, um “talvez” tornou-se um “quase”. Esse “quase” tornou-se tão forte que passou a governar as suas interacções com ele, os seus pensamentos, e até os seus sonhos. Até que um dia, ele sentiu-se obrigado a dizer-lhe que estava consciente dos seus sentimentos, mas que não os correspondia. A reacção dele, gentil e compreensiva, só fez o fascínio de Liliana aumentar.

Foi como se, naquele momento, ela acreditasse mais no que ele poderia vir a sentir por ela do que no que ele realmente sentia. O desejo, o “quase” dela, transformou-se numa obsessão que ela justificava como “amor”. Mas este amor, afinal, era uma forma de escapar da solidão, do vazio, de si mesma.

E Liliana, num redemoinho de emoções, começa a sonhar acordada: as fantasias de amor transformam-se em planos mirabolantes de romance. Porém, a verdade é dura: ele não corresponde aos seus sentimentos. Numa festa de Natal, depois de algumas doses a mais de “coragem líquida”, ela atira-se para cima dele, como um pinguim que, de repente, decide voar. O resultado? Um bilhete na mesa, sugerindo que procure ajuda. Ora que lindo “serviço”, não?

E assim, Liliana chega à minha consulta, lavando a alma entre lágrimas. “Amo-o tanto que fico fora de mim”, diz ela, desesperada, ao que eu respondo: “O que você está a exprimir não é amor, é abuso”. Ela, palpitando ar como se tivesse sido atingida por uma bomba, pergunta: “Se isto não é amor, então o que é?”

– “É a máscara que você usa para esconder medos profundos que ainda não encarou”, explico. Afinal, muitas vezes, buscamos ser salvas pelo amor, mas ele torna-se uma fuga da solidão e do medo. A verdade é que a solidão não é uma sentença, mas uma oportunidade de auto-conhecimento. Ao abraçá-la, deixamos de projectar numa outra pessoa as carências que nos assombram.

As impressões e memórias negativas que trazemos não são quem realmente somos. São cicatrizes da experiência, enquanto as boas lembranças são placas de sinalização que nos indicam o caminho da cura. Quando as memórias negativas vêm à superfície, prestar atenção nelas pode ter um efeito curativo. O amor, assim, deixa de ser um campo de batalha, e torna-se mais num espaço de crescimento.

Liliana começou a desmantelar as suas ilusões. Aprendeu a observar as suas emoções sem ser arrastada por elas, e a terapia tornou-se o seu santuário de auto-descoberta. Ao invés de se perder em devaneios sobre o colega, ela aprendeu que o amor verdadeiro não é uma fusão de almas, mas um baile harmonioso entre duas individualidades que se respeitam.

Lentamente, ajudei-a a perceber que o que chamava de amor era, na verdade, uma série de padrões emocionais que a aprisionavam. Ela queria ser salva pelo amor, mas evitava olhar de frente para as inseguranças que a faziam buscar uma validação desesperada. Encorajá-la a observar e sentir, sem julgamento, trouxe-lhe uma nova perspectiva – uma que lhe permitia reconhecer que a sua verdadeira força não vinha da obsessão pelo outro, mas da aceitação da sua própria companhia.

Quando aprendemos a curar essas feridas internas, deixamos de agir a partir de reacções automáticas e de necessidades urgentes que muitas vezes nem são nossas. E foi assim que a Liliana começou a perceber que aquilo que chamava de “amor” era, na verdade, uma ânsia de se sentir completa através do outro – uma ânsia tão comum que acabamos por confundir com amor.

Ela aprendeu que a verdadeira força não reside em buscar alguém que “complete” o que sentimos que está a faltar, mas sim em cultivar a plenitude dentro de si mesma. A partir desse novo entendimento, Liliana começou a transformar suas interacções e expectativas. Em vez de se submeter a um amor sufocante, que a descaracterizava, ela começou a conectar-se consigo mesma e a explorar o que realmente desejava numa relação.

Durante uma das sessões, disse-me com um brilho renovado nos olhos: “Agora entendo que posso ser feliz sozinha. O amor não precisa ser uma fuga, mas uma escolha consciente.” A partir desse momento, ela não apenas olhou para o colega com um novo olhar, mas começou a olhar para si mesma de forma diferente – com amor, respeito e gratidão.

A história de Liliana ilustra um ponto crucial: o amor verdadeiro não se apressa em fundir-se no outro, mas respeita a individualidade de cada um. Quando somos capazes de nos amar e respeitar, cultivamos uma segurança interna que nos permite relacionar-nos de forma saudável. Ao invés de permitir que o medo da solidão e do abandono nos guiem, passamos a escolher o amor como uma expressão livre e consciente.

Quando o amor magoa, é sinal de que já não estamos a falar de amor – mas de uma espécie de dependência emocional com verniz romântico. As pessoas pintam o sofrimento como uma prova de intensidade e “viver o amor até ao limite,” mas, na verdade, estão apenas a aguentar relações que corroem o espírito e diminuem a sua auto-estima. Dizem que “o amor dói,” mas o amor em si não deveria ferir. O que fere são as expectativas irrealistas, as manipulações disfarçadas de carinho e a dependência disfarçada de paixão. É o medo da rejeição e o pavor da solidão a ditar os termos de uma ligação tóxica, onde as fronteiras do que se permite ao outro fazer com a sua vida emocional se tornam completamente desfeitas. À medida que justificamos comportamentos que nunca toleraríamos fora de uma relação, arriscamo-nos a transformar o que deveria ser apoio mútuo num campo de batalha emocional. E assim seguimos, agarrados ao amor que magoa, que violenta ou que mata, como se houvesse algo de nobre em nos perdermos dentro de alguém.

No fundo, o lado sombrio das relações revela-se sempre que aceitamos que o amor é uma desculpa para a perda de nós mesmo(a)s.

O amor que cura é aquele que reconhece a liberdade de ambos, um laço que não se estreita pela possessão, mas que cresce na confiança e no respeito. Esse tipo de amor é raro porque desafia tudo o que fomos ensinado(a)s a esperar do amor: a fusão total, o ciúme a marcar território, e o “viver um para o outro” como um bilhete dourado para a felicidade. Esse amor convencional, que diz que “eu sou tua e tu és meu,” é fácil de romantizar, mas revela-se como uma prisão camuflada, onde, aos poucos, vamos desaparecendo em nome do “nós”. A expectativa de que o outro preencha todos os espaços do nosso vazio é um pedido absurdo, quase cruel, disfarçado de promessa romântica.

Já o amor que cura é menos dependente do outro para existir e mais atento ao nosso crescimento individual dentro da relação. Não se alimenta de medos, mas de escolhas; não se nutre de imposições, mas de aceitação. Este amor não sobrevive em quem deseja um salvador ou um pedaço do outro para colar em si e completar a própria identidade; ele nasce quando aprendemos a ser inteiro(a)s, e a dividir com o outro aquilo que somos, sem pedir de volta o que falta em nós. O amor que cura é audacioso, porque não joga o jogo da manipulação, não vive de cenários dramáticos nem de escassez de atenção, mas de uma relação profunda que não ameaça, antes potencializa quem somos. É um amor que, ironicamente, não precisa ser “para sempre,” porque o “sempre” pode ser uma forma de aprisionar, mas que fica enquanto faz bem. Esse amor, uma raridade, é ao mesmo tempo o maior desafio e a maior recompensa, pois exige que o aprendamos a encontrar – e a oferecer – primeiro, em nós mesmo(a)s.

Mantenha-se concentrado(a) em  sentir o que o amor é para si e em querer que ele tranquilamente se expanda na sua vida.

O desapego (que não deve ser confundido com desinteresse, desamor ou desprendimento) é a verdadeira revolução do amor, uma antítese do ‘amor romântico’ que tanto promete e tão pouco entrega. O desapego rompe com a ideia de posse, aquela noção distorcida de que amar significa cercar o outro, reivindicá-lo como parte de si. Quanta ironia! Andamos há séculos a praticar o amor como se fosse uma prisão e não uma escolha. O desapego é, no fundo, o antídoto contra esse amor pegajoso e claustrofóbico que confunde controlo com cuidado e que nos transforma em carcereiros dos próprios desejos. E é aqui que o desapego se torna revolucionário – ele não abdica do afecto, mas sim da necessidade de controlo. Amar com desapego é abrir a porta, saber que o outro pode ir e, ainda assim, ficar. É um amor de coragem, que arrisca perder para verdadeiramente respeitar. Quando se desapega, descobre-se uma das verdades mais libertadoras do amor: ninguém pertence a ninguém, e é nessa liberdade que o amor, afinal (e paradoxalmente), floresce.

Então, o que acontece quando nos libertamos das amarras das expectativas irreais? O amor transforma-se numa escolha consciente. Quando nos amamos, não precisamos de ciúmes ou jogatanas vis; encontramos espaço para sermos quem realmente somos.

O amor, esse grande espectáculo da vida, deve ser cultivado como uma flor que precisa de luz, água e carinho. Não confunda amor com apego; um é leve e livre, enquanto o outro é um peso que arrastamos. Quando abrimos o nosso coração, permitindo que o amor flua, mostramos ao mundo que estamos prontos para receber e dar. Água viva. Limpa e genuína.

Portanto, mantenha-se atento(a) às suas emoções. Questione-as, abrace-as, mas não as deixe governar a sua vida. O amor verdadeiro é a força que nos liberta, não a que nos aprisiona. Porque, no final, o amor começa em si. Assim que você se valoriza, se reconhece e se aceita, abre as portas para um amor que transforma, ilumina e, acima de tudo, liberta.

E, quando esse amor surge, ele não só transforma a maneira como nos relacionamos com os outros, mas também (e, diria, sobretudo) como nos relacionamos connosco mesma(o)s.


Sara Ferreira

Email: apsicologasara@gmail.com

Site: www.apsicologasara.com

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