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Um livro depois da escola

O assunto é triste, mas a história acabou por ficar bonita e a norte-americana Lois Brandt, a autora de ‘O Frigorífico da Magui’, mudou de vida.

Hoje, além de professora e escritora, é uma ativista na luta contra a pobreza infantil. Estivemos à conversa com a autora americana, depois de lermos o livro, e é justo dizer que adorámos – a história, as ilustrações e a mulher que é Lois Brandt.

No seu site, pode ler-se: “Escrevo sobre as coisas que vi ou ouvi.” Quão familiar é com as histórias de fome? Como é que esta história lhe apareceu?

‘O Frigorífico da Magui’ começou com uma memória da minha infância. Há muitos anos, estava a brincar em casa da minha melhor amiga, depois da escola, num daqueles dias que queremos que durem para sempre – havia sol e andávamos no jardim a apanhar gafanhotos. À medida que o sol foi baixando, comecei a ficar com fome e pedi à minha amiga para lanchar. Ela disse que não. Eu corri para dentro de casa na mesma (eu era esse tipo de miúda) e abri a porta do frigorífico. O frigorífico estava vazio e branco, como um frigorífico numa loja. Estavam alguns condimentos na porta e um pacote de leite pequeno na prateleira do meio. Reconheci o tipo de pacote: era um pacote de leite da escola, daqueles que só eram dados aos alunos que precisavam. A minha amiga tinha guardado o leite para o irmão mais novo, que ainda não tinha idade para ir à escola. A imagem do frigorífico vazio, assim como a raiva e a consternação que senti quando percebi que a família da minha melhor amiga passava por necessidades extremas de comida, ficou comigo para toda a vida. Um dia, estava a escrever as minhas memórias de infância e aquela imagem reapareceu-me. Foi quando escrevi a história.

Enquanto professora, é preciso estar muito próxima dos alunos para perceber que eles não têm quase nada para comer?

Na minha escola primária, sei que os professores rotineiramente providenciam comida, com o seu próprio dinheiro, para alimentar crianças das suas salas de aula. Quando eu dava apoio a alunos com dificuldades na leitura, eles mostravam-se muito irrequietos e acabavam por me dizer que tinham muita fome (e isto acontecia numa boa escola). Os alunos com quem eu trabalhava já estavam atrasados na leitura por não terem o que ler em casa. Ainda por cima, tinham agora a fome que os impedia de se concentrarem. Tive muitas dificuldades em vender ‘O Frigorífico da Magui’ a uma editora. Os editores diziam que não havia assim tantas crianças com fome nos Estados Unidos da América, mas os professores sabiam e muitos deles agradeceram-me por ter escrito este livro.

Como é que um livro pode mudar a perceção da fome numa criança e nos próprios pais?

Os humanos tomam decisões baseadas nas histórias que contamos uns aos outros. Se contarmos a nós próprios que somos um país rico e próspero, podemos ignorar as crianças com fome. Elas não se encaixam na história que contamos a nós próprios todos os dias. Contar histórias baseadas na verdade, mesmo que essas histórias sejam dolorosas ou nos causem vergonha, pode ajudar a sociedade a enfrentar os seus problemas. Não poderemos eliminar a fome na infância até olharmos honestamente para estes frigoríficos vazios, determinarmos as suas causas e começarmos a agir. As crianças e os pais têm reações diferentes ao livro. As crianças riem-se por causa das ilustrações engraçadas e identificam-se com a alegria da Magui e da Sofia. As crianças sentem que podem ajudar. Os pais, por vezes por causa das suas próprias experiências de vida, ficam de lágrimas nos olhos. As crianças em risco têm uma resposta ligeiramente diferente. Veem-se como parte de uma história maior. Numa sala de aula que visitei, para apresentar o livro, uma menina disse-me espantada: “Tenho uma ligação com a Magui.” Ela percebeu finalmente que não estava sozinha. Houve outras crianças como esta, boas crianças que mereciam uma vida melhor.

‘O Frigorífico da Magui’ é uma história bonita porque, apesar de ter fome, a menina cuida da melhor amiga e do irmão mais novo. Teria sido muito mais fácil escrever uma história supertriste. Porque não o fez?

A primeira versão de ‘O Frigorífico da Magui’ era a história mais deprimente do mundo. As personagens estavam zangadas, atiravam pedras e davam pontapés com demasiada força nas bolas de futebol. Estavam furiosas com os adultos e com o mundo. A história foi sonoramente rejeitada. Um editor chamou-lhe chocante. Na verdade, a maioria da escrita é um exercício de revisão. Portanto, sentei-me e tentei descobrir o coração da história. Tinha passado muito tempo desde o episódio com a minha amiga, mas eu continuava extremamente zangada por termos miúdos com fome num país tão rico. Tive de pôr essa raiva de lado. As verdadeiras razões pelas quais escrevi esta história foram a amizade e o amor. A partir do momento em que me foquei na amizade entre as duas raparigas, mesmo com um problema enorme de fome infantil, comecei a ter respostas muito positivas ao livro, por parte dos editores.

É uma ativista contra a fome. Em que atividades está envolvida?

A publicação de ‘O Frigorífico da Magui’ levou-me numa viagem incrível. Eu não comecei como ativista. Eu sou escritora. Esperava que os alunos nas visitas que faço às escolas falassem comigo sobre a fome e sobre os problemas que poderiam estar a enfrentar, mas não esperava o número de adultos que vieram ter comigo de lágrimas nos olhos para me contar acerca do tempo em que, em crianças, também eles passaram fome, ou sobre quando não conseguiram alimentar os seus filhos já em adultos. Em muitos casos, suspeito que eram histórias que nunca tinham sido partilhadas antes. A dimensão do problema apanhou-me de surpresa à medida que ia visitando escolas e falando com os pais. Há cerca de 14 milhões de crianças nos Estados Unidos na situação da Magui. Esses 14 milhões de histórias têm de ser ouvidas. Agora participo em blogs, faço palestras em grupos contra a fome e visito escolas. Continuarei a fazê-lo. Não comecei como uma ativista, mas qualquer pessoa que conheça o problema da fome infantil, os seus efeitos a longo termo e a extensão do problema, tem de agir.

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