As memórias de infância no Douro, particularmente durante a época das vindimas, fizeram com que Francisca Van Zeller se apaixonasse pelo mundo dos vinhos. Embora tenha tirado uma licenciatura em História e um mestrado em Jornalismo, a saudade do campo levou-a de volta à paixão de pequena: os vinhos. Atualmente, é responsável pelo Marketing e Comunicação da Van Zellers & Co. e representa a 15.ª geração deste negócio familiar com mais de 400 anos.
Quando é que se começou a apaixonar pelo mundo dos vinhos?
A minha infância e memórias mais felizes são no Douro, em particular durante a época das vindimas, quando a casa se enchia de pessoas, a adega trabalhava noite dentro e se sentia o cheiro a frutas silvestres do mosto a fermentar, a família estava reunida e havia música e festa. Acho que esta paixão vem mesmo de pequena.
O que é que a levou a trocar o jornalismo pela enologia?
O meu primeiro curso foi de História em Londres, porque sempre me fascinaram outras paisagens humanas: culturas, religiões, histórias e gastronomias. O mestrado em jornalismo que se seguiu ao curso foi uma forma de tentar dar continuidade a esta ideia, a investigação e partilha de histórias de outras pessoas ou situações. Concluí o mestrado em 2009, no início da crise económica, as oportunidades em jornalismo eram escassas e por isso dei continuidade à minha paixão pela comunicação numa empresa que promovia hotéis e Portugal como destino de viagem online, e que dava os primeiros passos em apartamentos de luxo para short-stays. Rapidamente senti falta do campo, do dinamismo de uma empresa de vinhos que se divide muito entre estar dentro e fora de portas, em particular da vinha e do vinho em si, e por isso candidatei-me a um lugar de Relações Públicas na Bacalhôa Vinhos de Portugal e consegui o emprego.
É difícil conciliar a vida pessoal com a profissional?
Já tive mais dificuldade neste equilíbrio, particularmente no início da minha carreira profissional. No caso da Van Zellers & Co, por se tratar de um projeto familiar, a conciliação é mais fácil, pois envolvo a minha família com o trabalho. Com os anos consegui perceber os ciclos de trabalho, sei que durante os meses de Setembro a Novembro temos um pico muito alto de trabalho e o mês de Janeiro é mais calmo e tento organizar o ano e o trabalho para corresponder a essas ondas. Fui aprendendo a dizer que não e aprendi a dar prioridade à organização e planeamento diariamente. Atualmente, concilio uns dias na Aveleda na comunicação de sustentabilidade da empresa, e outros na Van Zellers & Co onde me dedico ao Marketing e Comunicação. Concentro o trabalho para ter uma semana de 4 dias de trabalho, e assim tenho um dia com tempo para outros assuntos, família, amigos ou para mim.
Enquanto mulher, sente que alguma vez a trataram de forma diferente nesta área profissional?
Acho que no meu caso tive fatores que inicialmente pesaram mais no início da minha experiência profissional que era o facto de ser filha de um dos principais precursores dos vinhos do Douro no mundo, e por isso eu temia que houvesse uma expetativa elevada sobre o meu conhecimento de vinho e que me julgassem pela minha inexperiência e desconhecimento. Por isso, sempre trabalhei muito e procurei educar-me sobre vinhos para poder corresponder a essas expetativas elevadas.
Já vivi experiências desagradáveis a trabalhar em que usaram situações de poder, ou um discurso machista para tentarem intimidar ou impor-se. Não acho que sejam particulares ou concretas ao mundo do vinho, acho sim que o mundo tem algumas pessoas ignorantes e inseguras.
O mercado dos vinhos começa agora a ser mais procurado pelas mulheres?
Durante a pandemia, houve um crescimento muito grande no consumo de vinho por mulheres, segundo os dados da Wine Intelligence. Um dos principais drivers de crescimento do consumo de vinhos em mercados como a Alemanha, Reino Unido e Suécia são as mulheres.
No caso de Fine Wine, ou os vinhos de categoria Super Premium, em países como a China e Hong Kong, o consumo de vinho divide-se 50/50 entre homens e mulheres.
Segundo um estudo recente, há outro dado interessante sobre a procura por vinhos Super Premium, que regista um crescimento em pessoas mais jovens. A média de idade destes consumidores é de 40 anos, em comparação com 65 anos de idade nos anos 90.
Por isso sim, as mulheres e pessoas mais jovens, mostram mais interesse em vinho.
O que faz um bom vinho?
Um bom vinho tem de ter harmonia e equilíbrio. O meu Pai diz sempre com graça que um bom vinho é o que ele tem no copo. Esta ideia do presente, de estarmos agradecidos com o que temos e do momento que estamos a viver é uma filosofia de vida que se torna cada vez mais importante na minha vida, e por isso acho que um bom vinho é aquele que não me estraga esse momento, que me permite parar, refletir e criar pontes com as pessoas com quem estou.
Portugal oferece qualidade a baixo preço?
Sim, temos vinhos de muito boa qualidade e (infelizmente) ainda nos posicionamos a preços demasiado baixos. No Douro, temos um custo de produção muito elevado, devido à produção média das vinhas ser bastante baixa em comparação com outras das principais regiões do mundo e os custos de mão de obra elevados (o trabalho é quase todo manual e não mecânico), por isso vender a baixo preço é um suicídio a não muito longo prazo.
Esta relação é particularmente notória quando comparamos os vinhos mais caros do mundo, como é o caso do La Tâche da Domaine Romanée Conti (Borgonha) com um CV Curriculum Vitae (Douro), que com a colheita de 2016 conseguiram a mesma pontuação numa revista norte-americana líder de opinião (98 pontos) e o preço compara €6000 com €120. Sim, a todos os níveis oferecemos muita qualidade a baixo preço.
Temos pouca ‘reputação’ no estrangeiro?
Temos vinhos e regiões muito reconhecidas, como é o caso dos vinhos brancos dos Vinhos Verdes e do Vinho do Porto. Falta-nos construir grandes marcas, e construirmos a nossa reputação a partir de marcas que criam mais desejo no consumidor. A reputação está se a construir, e acho que o vinho é o reflexo de uma imagem nacional mais positiva – demos passos muito grandes nos últimos 15 anos (quer seja no vinho, indústria do calçado e têxtil, restauração e turismo, etc… ), mas falta-nos o salto para sermos uma referência a nível europeu e mundial de um país produtor de qualidade e consistência.
O que deve ou pode mudar?
A aposta na criação de grandes marcas, o pensamento ou estratégias a longo prazo, a consistência na qualidade e a criação de um maior valor intangível associado ao vinho que pode estar ligado às experiências que essa marca oferece, à sua filosofia ou valores que defende e as histórias que conta.
Quais são os planos para a Van Zellers & Co.?
Na Van Zellers & Co estamos em fase de relançamento de uma marca ligada a uma família no vinho há mais de 400 anos em diferentes mercados à volta do mundo.
Todos os nossos vinhos são feitos de forma quase artesanal, numa pequena adega no Douro, onde temos três lagares, e todas as nossas uvas são escolhidas à mão, pisadas a pé em lagar e fermentadas em pequenas cubas. Temos 16 hectares de vinha localizadas em diferentes zonas do Douro, e engarrafamos menos de 60 mil garrafas por ano. Este trabalho de detalhe permite-nos oferecer vinhos de alta qualidade, e de muito pequenas quantidades. Cada um dos nossos vinhos entra num dos nossos três pilares: vinhos criados pela Natureza, vinhos criados pela Mão do Homem ou Vinhos criados pelo Tempo.
Temos uma coleção única de Vinhos do Porto, com três colheitas do século XIX: 1860, 1870 e 1888, e vários anos ao longo do século XX. Criamos Vinhos do Porto com blends feitos várias vezes ao ano, para oferecer sempre um lote afinado para as diferentes categorias, e o número de garrafas são limitadas para garantirmos esta qualidade ao longo dos anos. Por exemplo, engarrafamos só 6000 garrafas do Van Zellers & Co Tawny 10 anos ou 700 garrafas do Van Zellers & Co Tawny 40 anos.
Estamos em fase de construção de uma casa em Adorigo, no coração do Douro, onde poderemos oferecer experiências ligadas ao vinho a partir de 2023 / 2024 com uma vista extraordinária sobre o rio Douro. Temos muitas ideias no papel, às quais vamos dando asas ao longo do tempo, tempo este que é nosso aliado no vinho.