No âmbito da campanha “A Minha Dor Não Me Define”, a Gedeon Richter, em parceria com a Sociedade Portuguesa de Ginecologia e com a associação MulherEndo, desenvolveu um inquérito nacional conduzido pela Spirituc, que partia da pergunta: “O que sabem os portugueses sobre endometriose?”.
Os resultados revelaram dados alarmantes: mais de 30% dos homens nunca ouviram falar da doença — um valor muito superior aos 8% das mulheres sem endometriose que a desconhecem — e expõem o impacto profundo da patologia na qualidade de vida.
Entre as mulheres diagnosticadas, quase metade (48,9%) relata episódios dolorosos semanais e mais de três quartos sofrem com dor mensalmente, com reflexos diretos na vida profissional, emocional e sexual. Em média, em 2024, uma mulher com endometriose faltou cerca de 15 vezes ao trabalho devido à doença. A dimensão sexual (30,8%), a saúde mental e a autoestima (25,6%) surgem como as áreas mais afetadas, seguidas da vida profissional (20,9%), social (12,8%) e familiar (9,8%).
A elevada prevalência de dor, que muitas ainda consideram “normal”, e os níveis baixos de informação sobre tratamentos (apenas 29,9% dizem sentir-se bem informadas) reforçam a urgência de maior visibilidade mediática e de campanhas de sensibilização.
Fátima Faustino, médica especialista em Ginecologia e Obstetrícia, responsável pelo Centro de Tratamento de Endometriose do Hospital Lusíadas Lisboa e presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, falou com a LuxWoman sobre esta doença e sobre a importância de continuar a desmistificá-la
O inquérito nacional mostra que mais de 30% dos homens portugueses nunca ouviram falar de endometriose. O que pode justificar esta diferença no conhecimento entre géneros?
A endometriose afeta sobretudo mulheres em idade reprodutiva, o que faz com que sejam estas que procuram informação sobre a doença e consequentemente as campanhas de sensibilização e materiais educativos serão muito mais dirigidas a este público-alvo. Por outro lado, os homens mantêm-se culturalmente mais afastados de temas relacionados com a saúde ginecológica, embora a minha experiência no acompanhamento desta doença me permita afirmar uma preocupação e um entendimento crescente dos companheiros que vivenciam o dia a dia, muitas vezes penoso das mulheres com endometriose.
Esta disparidade no conhecimento reflete desigualdades na educação em saúde, barreiras culturais e o modo como a informação é direcionada para diferentes públicos em Portugal, não se devendo apenas a um desinteresse individual.
Muitas mulheres continuam anos à espera de um diagnóstico. O que está por detrás deste atraso tão frequente e como pode ser diminuído?
Este atraso frequente é resultado de múltiplos fatores, entre eles a complexidade da doença, a falta de reconhecimento dos sintomas e a insuficiente sensibilização dos profissionais e da sociedade para a doença. A dor é um sintoma dificilmente quantificável e na minha experiência, mais valorizado pelas doentes do que às vezes pelos próprios médicos. E a grande questão é saber qual a dor que deve ser investigada e como a devemos investigar. Em primeiro lugar saber e ter tempo para ouvir a mulher. Quando nos dizem que sofrem com dores menstruais de agravamento progressivo, quer em tempo de ocorrência, quer em intensidade e que não aliviam com a terapêutica analgésica e anti-inflamatória habitual, será melhor investigar essa dor. Mais ainda, se essa dor se agrava com a defecação ou ocorre durante as relações sexuais. E não podemos ficar tranquilos com uma ecografia pélvica normal. Temos de avançar com a investigação e só isso evitará que estas mulheres tenham longos anos com má qualidade de vida, sem um diagnóstico da doença.
Um diagnóstico mais rápido poderá depender de uma maior divulgação de informação sobre a endometriose e de uma abordagem mais atenta por parte dos profissionais de saúde.
Por que motivo a dor menstrual intensa continua a ser socialmente desvalorizada, mesmo quando é incapacitante?
A desvalorização da dor menstrual intensa, mesmo quando incapacitante, está enraizada em estigmas sociais e preconceitos de género, que minimizam o sofrimento feminino e dificultam o acesso a apoio e tratamento adequados.
Que sinais de alerta devem levar uma mulher a procurar avaliação médica para despistar uma possível endometriose?
Determinados sinais de alerta devem motivar uma mulher a procurar avaliação médica para despistar uma possível endometriose, nomeadamente dor menstrual intensa e incapacitante que não cede aos analgésicos e anti-inflamatórios habituais, dor nas relações sexuais, desconforto pélvico persistente, dor cíclica quando menstrua, quer a nível intestinal, quer a nível da bexiga – há mulheres que passam uma vida inteira a tratar infeções urinárias ou síndrome de colon irritável que não o são. Para além da dor, importa salientar que um terço das mulheres com endometriose sofrem de infertilidade e esta é uma das principais causas que as leva à consulta.
Sabemos que a endometriose pode afetar a vida profissional, familiar e íntima. De que forma o acompanhamento clínico pode ajudar a reduzir esse impacto?
O acompanhamento clínico é fundamental para ajudar a reduzir este impacto, promovendo o alívio dos sintomas e uma melhor adaptação à doença. Na minha opinião, esse acompanhamento deve ser realizado por um grupo multidisciplinar, de forma a tratar a doença de uma forma holística. A Unidade de Dor, a Fisioterapia, a Psicologia são peças fundamentais na abordagem de alguns casos. Também nos casos com dor crónica e infertilidade, em que a terapêutica hormonal não está indicada, o recurso à Cirurgia Minimamente Invasiva tem muitas vezes de ser realizada por equipas multidisciplinares e a orientação posterior para uma unidade de Procriação Medicamente Assistida é muitas vezes necessária. Esta abordagem multidisciplinar da endometriose é fundamental para lidar com a complexidade da doença.
Apenas três em cada dez doentes dizem sentir-se bem informadas sobre os tratamentos. Onde podem as mulheres procurar informação fidedigna e apoio especializado?
É fundamental que as mulheres procurem informação fidedigna e apoio especializado, recorrendo a profissionais de saúde que as possam esclarecer e se necessário orientar para centros referenciados. Também as associações de doentes e as fontes oficiais reconhecidas têm um papel importante na divulgação e esclarecimento da doença.
Há quem viva com sintomas há anos, mas ache que a dor “faz parte”. Que mensagem deixaria a essas mulheres para que não se resignem?
Partilho a mensagem divulgada pela Mulherendo, associação de apoio a mulheres com endometriose, a qual subscrevo: «A dor nunca deve ser vista como normal ou inevitável. Procure ajuda médica especializada, exija esclarecimentos e lembre-se que existe uma comunidade pronta para apoiar, partilhar experiências e lutar por mais dignidade no cuidado à saúde feminina. Merecer qualidade de vida e respeito é um direito, nunca um luxo».
Como pode a sociedade contribuir para quebrar o tabu em torno da endometriose?
A educação ginecológica deve começar na escola, abrangendo ambos os sexos. Sem dúvida que os meios de comunicação, nomeadamente digitais, se revestem da maior importância na divulgação da doença, desde que se trate de informação fidedigna. As associações como a Mulherendo têm tido um papel fundamental no esclarecimento e apoio às mulheres com endometriose, contribuindo para quebrar o tabu em torno da doença.
Que avanços recentes na abordagem e tratamento da endometriose mais inspiram esperança às mulheres portuguesas?
Temos acompanhado a investigação científica intensa desenvolvida nesta área e apesar de continuarmos sem uma cura definitiva para a endometriose têm sido conseguidos avanços significativos no diagnóstico, com a introdução de um teste não invasivo na saliva, que esperamos em breve ser comercializado em Portugal. Também na terapêutica médica novos regimes hormonais que aliviam sintomas severos com menos efeitos colaterais e na terapêutica cirúrgica, maior precisão na remoção das lesões com técnicas minimamente invasivas (laparoscopia avançada e robótica), com menos complicações e melhor preservação da fertilidade.
As medidas governamentais aprovadas recentemente, como faltas justificadas ao trabalho e escola, vão contribuir para a proteção dos direitos laborais e académicos das mulheres com endometriose. Também o aumento da comparticipação do Estado no preço dos medicamentos específicos para a doença, irá facilitar o acesso a estas medicações.
Todos estes avanços na abordagem da endometriose poderão contribuir para um futuro com melhor qualidade de vida para estas doentes.



