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Ivvi Romão: O privilégio da dúvida

É modelo, bailarina, produtora, empresária e ativista pelos direitos das pessoas LGBTQIA+. A luta pela aceitação e inclusão da diversidade na sociedade e pela desmistificação da transexualidade são apenas alguns dos seus objetivos.

Nasceu no Brasil, no estado de Alagoas, e a paixão pela dança levou-a a Dublin e a Londres, onde dançou no London Russian Ballet. Mas “o privilégio da dúvida e do prazer de ser quem se é”, como refere, ditou o afastamento deste amor. A título de férias, por sugestão do pai, veio para Portugal, país, que, segundo a própria, não a quis deixar ir. A viver em Lisboa desde 2017, ingressou no mundo da moda enquanto modelo masculino, mas a insuportável noção de estar a viver uma mentira e a dura depressão pela qual passou depois da morte da irmã mais nova, sobressaíram enquanto gatilhos para ganhar a coragem de se assumir enquanto mulher transgénero. Hoje, aos 24 anos, a modelo é, ainda, empresária e produtora de eventos. Destaca-se como voz ativa na luta pelos direitos das pessoas, não só transgénero, como de todas as minorias sexuais e de género. O seu Ivvi Fund Festival, cuja segunda edição decorreu a 30 de junho, no B.Leza, em Lisboa, é disso exemplo. Trata-se de um festival que celebra a diversidade e tem como objetivo dar visibilidade a artistas queer. A receita do evento reverte a favor de causas LGBTQIA+, além de apoiar um fundo para a sua cirurgia de redesignação genital. Posicionando-se na linha da frente da luta contra o preconceito e pela visibilidade das pessoas transgénero e dos direitos das LGBTQIA+, a modelo diz ser “aquela que vai abrir espaço, mostrar possibilidades e representatividade”, prometendo vir a fazer muito mais neste âmbito.

Modelo, bailarina, produtora, empresária… Nas suas palavras quem é Ivvi Romão? Como se apresenta?

Ivvi Romão é resiliência, é força, é vontade, é querer. Ivvi é sonhar e fazer acontecer. É o privilégio da dúvida e do prazer de ser quem se é. Ivvi sou eu.

Nasceu no Brasil, onde viveu até que idade?

Vivi no Brasil até muito perto dos meus 18 anos. Depois, mudei-me para Dublin para fazer intercâmbio de línguas.

Viveu em Dublin e em Londres, é bailarina, dançou para o Bolshoi Ballet. Pode contar-nos um pouco sobre o seu percurso enquanto bailarina?

A minha carreira como bailarina começou aos treze anos e foi um processo muito importante para mim. Sempre fui muito dedicada à dança e, para mim, não havia nada mais importante do que o ballet! Comecei a dançar em Maceió, a minha cidade natal, na Escola de Ballet Eliana Cavalcanti, a primeira escola de ballet de Alagoas. De seguida, fui aceite na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville, onde estive durante algum tempo, até me mudar para São Paulo, onde era estagiária na Cia Paulista de dança Adriana Assaf. Naquele tempo, era morrer ou matar por dançar! O Brasil começou a ficar pequeno para os meus sonhos e decidi mudar-me para Dublin, para estudar inglês. Entretanto, fiz uma audição, em segredo, para a London Russian Ballet School, onde tive o prazer de fazer parte da companhia jovem, como solista, tendo oportunidade de dançar com os maiores nomes da atualidade do ballet clássico. Depois disso, ainda estive em França e, também, em Portugal para dançar, mas encerrei o meu percurso no ballet clássico por motivos maiores pois precisava de me focar na minha saúde mental e, por mais que amasse – e ainda amo – o ballet, entendi que amar também é perceber a hora de deixar ir ou de afastar. Foi exatamente o que fiz.

Entretanto, decide vir para Portugal… O que a trouxe ao nosso país? O que queria fazer em Portugal?

Vim a passeio. A ideia foi sempre voltar a casa, no Brasil, após o afastamento da dança. Mas vim de férias, por indicação do meu pai que gosta muito da cultura portuguesa. Costumo dizer que, nessas férias, Portugal não me quis deixar ir… Hoje ainda cá estou.

Foi por cá que começou o seu percurso em moda? Como surgiu essa oportunidade?

Os meus primeiros passos na moda foram dados no Brasil. Era assistente de designer de moda de uma grande amiga, a Giulia Colferai, que hoje tem a sua própria marca. No meio da loucura que são os projetos de quem trabalha em produção, acabei por, um dia, ser modelo das peças. Começaram todos a dizer-me que tinha jeito. Gostava mas nada, naquele momento, era mais importante, para mim, do que a dança. Entretanto, quando cheguei a Portugal, conheci o Rui Rocha, que não é só um dos maiores nomes quando falamos de cabelos, mas também, hoje, um grande amigo. Numa conversa, surgiu a curiosidade de fazermos umas fotos e o ‘Ruizinho’ – como o costumo chamar – enviou-as para uma agência aqui em Lisboa. As coisas correram muito bem e, desde então, tenho seguido a carreira de modelo profissional no mercado europeu.

Começou como modelo masculino. Nessa altura era, ainda, difícil assumir-se enquanto transgénero?

Claramente! É sempre difícil lidar com a mentira e, para mim, aquela pessoa, aquele personagem que criei não era eu. Magoava-me muito ter de lidar com isso: um corpo masculino, super sexualizado, dentro de uma indústria que trabalha 100% com imagem. Não havia abertura para a possibilidade de diálogo sobre o assunto. Para mim, foi um processo muito complicado, mas necessário, aprendi muito.

O que é que foi determinante para se afirmar enquanto mulher transgénero?

Coragem, força e, também, uma vírgula que poderia ter sido um ponto final. Passei por um episódio depressivo muito grande, depois da morte da minha irmã mais nova e cheguei mesmo a tentar ferir-me, tive de ficar alguns dias internada. Foi aí que percebi que a vida é demasiado linda para ser vivida na perspetiva dos outros, para viver uma mentira! Coloquei, então, um ponto final no que queriam que eu fosse e comecei um novo capítulo, sendo quem realmente sou… porque se a vida é pequena, que seja um show para mim!

O que se revelou mais difícil, nessa transição?

Lidar com todo a burocracia. Infelizmente, ainda não pensam em corpos trans como corpos válidos e sim como estatística. Ter de proceder a uma série de processos, que me expuseram, de uma forma que, no momento, não precisava de ser exposta, foi complicado. O sistema é muito ‘CIStema’, ou seja, está muito direcionado para captar pessoas cisgénero e falha imensamente na parte humana, quando as pessoas estão em busca de uma trajetória mais fazível, quando falamos da sua vida.

Com que idade começou a sentir que não se identificava com o género masculino?

Sempre tive essa noção mas não tinha acesso a informação que me pudesse direcionar para o que realmente se passava. Nunca me enquadrei como um homem, nem mesmo na altura em que me viam enquanto homem gay. Não me via assim e também não entendia o porquê, mas, aos 15 anos, tive noção de tudo e comecei a empoderar quem realmente era, até conseguir ser quem sou hoje.

Quando percebeu que era transgénero, como e quando achou que devia comunicá-lo aos seus familiares e aos seus amigos mais próximos?

Sempre tive um diálogo muito aberto com a minha família e amigos. Muitos amigos já sabiam, mesmo antes de mim, porque o processo de aceitação não acontece da noite para o dia, é um caminho longo a percorrer. Com a minha família falei logo. A primeira pessoa foi a minha mãe, que é a minha melhor amiga, vivemos tudo juntas – ela com as questões dela e eu com as minhas, mas sempre juntas. A minha mãe sempre esteve ao meu lado! O meu pai já foi um percurso um pouco diferente e não vou entrar em detalhes mas, de uma maneira geral, quem realmente deveria fazer parte do processo fez e é isso que importa.

O que sentiu? Como foi esse momento, para si?

Senti-me livre, tranquila e senti-me eu, pela primeira vez, em muito tempo. Foi o momento mais importante, porque foi quando, de facto, me aceitei, entendi-me, respeitei-me e isso não tem preço. Poder acordar e saber que já não tinha a responsabilidade de ser uma pessoa que não era em prol dos outros, mas sim ser quem sou, por mim, foi maravilhoso.

Como é ser uma mulher transgénero em Portugal?

Difícil, mas não apenas aqui, acredito que em qualquer lugar do mundo. Como referi antes: corpos trans são sempre invisibilizados e marginalizados, somos sempre colocados à margem. A expectativa de vida de uma pessoa trans é de 30 anos e a cada 19 minutos morre alguém por ser trans, no Brasil. Portugal ainda é um país muito machista, muito tradicional e tem um peso histórico visível! Mas não é apenas aqui, é em todo o lado.

Há, ainda, muito preconceito?

Diariamente ocorrem mortes de mulheres trans pelo preconceito ainda ser muito grande. Os dados são terríveis, os números de mortes de pessoas trans no mundo são equivalentes aos de uma guerra.

Quando e com que frequência sente esse preconceito?

Vinte e quatro horas, em todos os lugares, das mais possíveis e inimagináveis formas, o preconceito direto ou em forma de piada, os risos, olhares, murmúrios, etc… O preconceito existe mas agora está mais refinado, mais subtil… Mas está aí, em todo o lado, basta olhar.

Em Portugal há condições para ajudar pessoas transgénero? Há apoios médicos e acompanhamento psicológico?

Sim, existem espaços que dispõem de apoios mas a grande problemática é a burocracia que dificulta o acesso deste público ao acompanhamento de forma gratuita. O sistema privado é uma opção quase utópica, tendo em conta a realidade financeira atual. É bastante burocrático, uma primeira consulta pode levar cerca de sete meses para ser marcada. Falta sensibilidade para o assunto.

A que tipo de ajuda recorreu?

Inicialmente, a consultas de psicologia que foram direcionadas ao sexologista e, posteriormente, ao endocrinologista que é algo que recomendo a todas as pessoas que estão no início da transição ou a pensar fazer. É importantíssimo lembrar que cada corpo é um corpo e tem a suas individualidades e respostas em tempos diferentes. Portanto, o acompanhamento médico é indispensável.

Sente que, hoje em dia, há mais liberdade para que as pessoas possam ser quem são ou quem quiserem ser?

Hoje em dia existem mais pessoas a lutar para que mais pessoas sejam como querem ser, o que promove essa liberdade e espero que muitas mais se juntem nesta missão tão importante. Porque, se eu não for quem sou, se, quem está do outro lado, não puder ser quem verdadeiramente é, quem seremos? Para quem? Por quem? E aí já se perde o sentido…

Hoje está mais perto daquilo que ambiciona para si?

Não! Estou bem longe. Quero muito, sonho muito! Costumo dizer que o copo está sempre meio vazio, porque só assim posso encher mais, fazer mais. Tenho muito para contribuir para a sociedade, quero ir muito mais longe e não fiz nem 5% do que sei que quero e que sou capaz de fazer. Ainda há muito por vir!

As suas características podem representar uma mais-valia no mundo da moda? Em termos de inclusão e de representatividade, por exemplo?

Não só as minhas mas as de vários outros corpos que fogem do padrão imposto socialmente. A moda também é uma forma de ativismo e de representatividade. É extremamente importante todas as pessoas se verem representadas.

Também é mentora do Ivvi Fund Festival. Como surgiu a ideia e em que consiste este projeto?

É um festival criado para reunir e celebrar a diversidade de ser quem se é, que procura dar visibilidade a artistas LGBTQIA+ e migrantes da cena underground lisboeta, no qual a receita gerada é direcionada a causas LGBTQIA+, que também apoia um fundo para a cirurgia de redesignação genital que sonho fazer.

O que é preciso fazer para dar mais voz a estas iniciativas?

Estar atenta, não lidar com a empatia como um objeto de decoração, ouvir mais, questionar mais possibilidades, gerar mais espaços, tirar da margem e trazer para o centro, enxergar as demandas e estar presente. É preciso humanizar!

E para combater a transfobia? Há ainda muito desconhecimento?

Sim, há muito desconhecimento. Pessoalmente, vejo-o como um desconhecimento por opção. E pelo comodismo de se viver dentro de bolhas cheias de privilégios, quando o foco devia ser abrir essas bolhas e educar mais de forma construtiva. Temos uma sociedade que está acostumada a reproduzir ações que matam centenas de pessoas por ignorância, que é direcionada pelo medo da desconstrução do comodismo. Informação, nos dias de hoje, é o que não falta! Falta é interesse nessa informação. O desconhecimento só existe para quem quer! Claramente, falando da nossa realidade, o que mais existem são oportunidades para acabar com o desconhecimento. Para qualquer assunto, o Google está aí!

O que é fundamental mudar na educação das gerações mais jovens? Ainda é preciso educar para o respeito pela diferença?

Mudar a forma de comunicação. É preciso humanizar os processos e trazê-los para perto. Entender que o mundo tem um prisma com uma possibilidade de cores, que cada uma delas deve ser respeitada e que está tudo bem em ser diferente, porque é isso a verdadeira beleza! Devemos lembrar-nos que uma engrenagem não funciona sem a outra e que é o óleo que faz com que elas funcionem. É a empatia, a comunicação, o respeito que, muitas vezes, faltam nessa grande engrenagem que nós vivemos – que é o mundo. Há lugar para todos!

Enquanto ativista, tem mais projetos em mente?

Tenho muitos, mas o principal é ficar viva, pois só assim dá para fazer com que as coisas andem. Como ativista, considero-me uma das que está na linha da frente, como muitas estiveram e morreram para eu estar aqui. Hoje sou eu quem está na linha da frente, chegar onde chegámos não foi fácil. Quero ser aquela que vai abrir espaço, mostrar possibilidades e representatividade. Mato e morro pelas minhas e por todas as pessoas que represento. Muitos projetos virão mas esse é, para já, o principal!

Que outros sonhos a movem?

Sonhos infinitos. Enumerá-los seria um grande erro.

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