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O Peso das Filhas da Mãe

Crescer para ser a salvadora de alguém, até perder a própria identidade, é uma carga pesada que muitas mulheres ignoram — até que ela se torne impossível de carregar

Maio é o mês em que se celebra o Dia da Mãe, e poucos temas são tão silenciados na nossa cultura quanto o desequilíbrio materno. O mundo criou a ilusão de que a mãe é infalível, e esse é um daqueles tabus espinhosos, mas, como gosto de lançar provocações, cá estou eu, pronta para cutucar esse vespeiro com o meu palitozinho.

As relações entre mães e filhas estão entre as mais complexas e desafiadoras, pois a filha funciona como um espelho no qual a mãe se vê reflectida, carregando consigo as marcas dos seus traumas e das limitações impostas pela sociedade. Simone de Beauvoir observou que os conflitos emocionais entre mães e filhas nascem, muitas vezes, do facto de a mãe ter sacrificado grande parte de si mesma para cuidar, o que pode gerar ressentimento e até inveja da liberdade e juventude da filha. Já os filhos homens tendem a ter um percurso mais livre nesse contexto, pois a mãe não os vê como uma extensão directa de si mesma, projectando neles expectativas diferentes das que recaem sobre as filhas. Tradicionalmente, os rapazes são incentivados a conquistar o seu espaço no mundo, tanto para si quanto para a família, o que faz com que recebam mais autonomia, apoio e reconhecimento materno do que as meninas.

Ensinaram às mulheres que a salvação viria montada num cavalo branco. Era só esperar, aguentar, sonhar. Mas o tempo passou, o cavalo cansou-se e o príncipe revelou ser menos encantado e mais desencantador. Assim, desde pequenas, as mulheres são ensinadas a esperar por um salvador – aquele que as resgatará da monotonia, do sofrimento, da falta de amor. Crescem com a ideia de que, um dia, um príncipe virá para preencher os vazios e aliviar as feridas que o mundo lhes causou. Mas e quando essa promessa se desfaz? Quando a realidade desmonta o conto de fadas e revela que o final feliz nunca esteve garantido?

Não foi o cavalo branco que quebrou, não foi a carruagem que se transformou em abóbora. O conto de fadas desmoronou bem antes disso, quando a princesa descobriu que o seu príncipe não passava de um sapo bem treinado. Mas o que fazer quando a desilusão se instala? Muitas mulheres resolvem a equação da desilusão colocando outra mulher no lugar do salvador: a própria filha.

Sim, muitas vezes, o príncipe falha. Não resgatou, não cuidou, não protegeu, não amou como prometia o conto de fadas. E se ele não cumpriu o papel, alguém terá de o fazer. Muitas mulheres, sem darem por isso, olham para as próprias filhas como a tábua de salvação que nunca encontraram nos homens. Fazem delas confidentes, terapeutas, fiéis escudeiras emocionais. A menina, sem escolha, herda uma missão invisível: preencher os vazios da mãe, carregar os fardos que o príncipe deixou cair, facilitar para ela, compensar todas as dores que a vida impôs. E assim, sem palavras, sem acordos explícitos, a filha passa a existir menos para si mesma e mais para a mãe.

Mas esta troca de papéis vem com um preço. A menina que cresce como ‘parceira emocional’ da mãe aprende que amor é sacrifício, que ser útil é mais importante do que ser livre, que a sua existência está sempre em função de outra. Confunde afecto com dever, cuidado com dívida, presença com obrigação. E um dia, quando tenta construir a própria vida, sente um peso invisível puxando-a para trás – a culpa de querer ser apenas filha, e não salvadora.

A “síndrome da salvadora” é aquele manual não escrito que muitas mulheres seguem à risca: esgotam-se a “salvar” os outros, despejam energia em quem as rodeia, vivem prontas para aconselhar, amparar, resolver – e tudo isso, claro, à custa de si mesmas. No fundo, são heroínas exaustas de uma história que nem sequer foi escrita para as livrar.

À primeira vista, este comportamento parece quase exemplar: é celebrado, elogiado e até erguido como um padrão de generosidade a seguir. Afinal, quem não gostaria de ter por perto alguém sempre disponível, prestativa e disposta a resolver tudo? Isso garante à ‘salvadora’ um lugar de destaque: ela é necessária, bem-vista, aprovada e, em muitos casos, até admirada. Mas a que custo?

Ajudar o próximo faz parte da vida em sociedade, claro. No entanto, o que define a ‘salvadora’ não é a solidariedade saudável, mas um impulso compulsório, desmedido e desgastante de viver para resolver os problemas dos outros – muitas vezes, sem que ninguém sequer tenha pedido. E isso não a prejudica apenas a ela, mas também àqueles que ‘salva’, pois ao assumir o papel de heroína, cria uma dinâmica de dependência, inversão de papéis, infantilização de pessoas adultas e dívida emocional.

No fundo, a ‘salvadora’ não acredita que o outro tenha recursos para enfrentar as próprias dificuldades. Ela sente que só a sua intervenção pode evitar o caos e encontra nisso uma forma de validação pessoal. Esse ciclo pode acontecer tanto de forma consciente quanto inconsciente, mas invariavelmente alimenta um padrão nocivo de controlo disfarçado de ‘bom samaritanismo’.

Por trás dessa compulsão em ‘ajudar’, escondem-se razões menos óbvias: medo da rejeição, necessidade de controlo, busca incessante por aceitação, desejo de se sentir indispensável. E o resultado? Uma vida pautada pelo esgotamento emocional e por relações desequilibradas e pouco gratificantes, onde a ajuda oferecida pesa mais como uma âncora do que como um verdadeiro suporte.

As ‘salvadoras’, movidas pelo impulso de ‘ajudar’, acabam por ultrapassar os limites, criando relações tóxicas marcadas pela dependência e co-dependência. E depois? Ninguém sai realmente feliz dessa equação. Quem depende delas vê a sua auto-estima e auto-confiança minguarem, sentindo-se cada vez mais incapaz de lidar com a própria vida.

E lá está a nossa heroína não-oficial, soterrada em dramas alheios, sem fôlego e sem férias, porque alguém, em algum momento, a convenceu de que seu propósito de vida era ser um “serviço de apoio ao cliente” humano, 24/7.

As filhas mulheres são, tantas vezes, convocadas ao posto de fiéis guardiãs da dor materna, as suas sombras leais. São as confidentes, as mediadoras, as resolvedoras, as pseudo-terapeutas, as cuidadoras não remuneradas, as aliadas emocionais contra o desamor do progenitor. Crescem a saber que, se não podem remendar o coração partido da mãe, pelo menos podem servir como muletas emocionais. E o problema?

O problema é que uma filha não pode viver a própria vida se estiver ocupada demais na tentativa de salvar a mãe.

Quando uma mãe ferida vê na filha a esperança de redenção, o amor deixa de ser um vínculo e torna-se uma coleira. É a filha que deve estar sempre disponível, emocionalmente presente, que precisa equilibrar-se na corda bamba entre ser boa o suficiente para suprir a carência materna, mas não boa demais ao ponto de ameaçar a sua frágil auto-estima. O medo da rejeição instala-se cedo, pois toda a tentativa de autonomia vem acompanhada da sombra, do medo ou da culpa.

As violências que as mulheres sofrem no patriarcado transformam-nas em pessoas sem autonomia, voltadas apenas para a família, muitas vezes apoiando-se nas filhas para receber o que não receberam de ninguém a vida inteira. Esse ciclo coloca as mulheres em posição de repetir padrões de dependência e culpa, em que correm o risco de se manterem objetificadas (ou “úteis”) no papel de cuidadoras emocionais de suas mães.

Desde cedo, essas filhas aprendem que o sofrimento materno precisa de atenção constante. Tornam-se baluartes do bem-estar da mãe, assumindo um papel que nunca deveria ser seu. Algumas passam a regular as emoções da própria mãe, como se fossem uma extensão dela. Outras são envolvidas em narrativas de vitimismo que as fazem sentir-se eternamente em débito. E o efeito colateral? Uma culpa medonha, crónica e paralisante.

Quando uma filha cresce ‘programada’ para cuidar emocionalmente da mãe, a sua identidade forma-se à sombra da necessidade alheia. Aprende, desde cedo, que o seu valor está no que dá e não no que é. Como consequência, torna-se uma adulta exausta, ansiosa, hipervigilante – sempre a antecipar o próximo colapso materno. Desenvolve um sentido de responsabilidade esmagador, com sérias dificuldades em experienciar leveza ou mesmo prazer, além de uma dificuldade em dizer ‘não’ e um medo paralisante de decepcionar. Muitas carregam culpas difusas, como se tivessem uma dívida perpétua. No corpo, esta sobrecarga manifesta-se em tensão crónica, insónias, problemas gastrointestinais e até doenças auto-imunes. Na mente, pode traduzir-se em depressão, ataques de pânico e uma sensação constante de não ser suficiente. O pior é que, por terem aprendido a suprimir as próprias necessidades, muitas nem percebem que estão presas numa jaula invisível: acham simplesmente que “a vida é assim”.

Pois é, a gaiola é invisível, mas estas pequenas-grandes filhas das mães, que amiúde me chegam ao consultório, nem sabem que elas próprias poliram as grades, decoraram-na com luzinhas e chamaram-lhe “amor incondicional”.

A verdade é que muitas filhas não foram amadas por serem quem são, mas pelo papel que desempenharam. Foram valorizadas como confidentes, terapeutas, enfermeiras, “amigas”, colegas, compensadoras. E quando tentam sair desse ciclo e voltar ao simples papel de filhas, sentem uma culpa esmagadora. Afinal, como ousam não serem o que delas sempre se esperou?

Mas aqui está um segredo: essa culpa não é um sinal de erro. Nem toda culpa aponta para uma falha real. Muita dela é apenas uma resposta emocional à manipulação que, de tão naturalizada, se tornou invisível.

Precisamos falar sobre autonomia. E autonomia não é deixar de precisar das outras pessoas, mas sim conseguir estar ao volante da própria vida, buscar esse lugar de protagonismo e amadurecimento emocional, afectivo, financeiro, académico, profissional, etc. As filhas das mães e as próprias mães têm muito a ganhar quando a relação é pautada no desejo de estarem juntas e não na obrigação de compensar por todo o sacrifício que a sociedade impôs à mãe.

Uma coisa de que não se fala é da forma como as mulheres, na nossa sociedade, sentem-se autorizadas a usar outras mulheres (misoginia internalizada), já que foram usadas a vida toda. Os relatos que recebo e as histórias que acompanho são desoladoras, muitas recorrem à patologização da mãe (hello, filhas das “mães narcisistas”) para conseguirem aval para terem algum espaço.

E é aqui que entra a importância do acompanhamento psicológico. Porque desaprender um padrão tão enraizado é um trabalho que exige tempo, suporte e um olhar treinado para desvendar o que, por anos, pareceu normal.

A terapia ajuda a diferenciar amor de dependência emocional. Ensina a colocar limites sem culpa, a desconstruir a ideia de que cuidar de si é abandonar a mãe. Ajuda a recuperar a identidade que ficou soterrada sob o peso das expectativas alheias.

Este é e tem sido um ciclo vicioso, viciado e co-dependente, e que se perpetua de geração em geração. Um ciclo que se arrasta implacavelmente através das gerações, repetindo-se como um disco riscado.

Termino hoje onde comecei, com a mesma cantiga desafinada de sempre – às mulheres venderam a ideia de que sem um homem salvador, estariam irremediavelmente perdidas.

Quando percebem que ele não vai cumprir essa missão, buscam alívio nas próprias filhas. Mas é tempo de romper esse ciclo.

Querida filha da mãe, perceba o seguinte. O seu bem-estar é, sem dúvida – e enquanto adulta que é – uma responsabilidade sua. Mas aqui vai a verdade nua e crua: principalmente nós, mulheres, fomos ensinadas a acreditar que colocar as nossas necessidades em primeiro lugar é egoísmo. E, sinceramente, quem inventou essa historieta?

Não podemos normalizar e acomodar-nos cronicamente a situações que nos drenam, nem continuar a ser a última da lista. O auto-cuidado vai além de banhos de espuma ou máscaras faciais. É também aprender a dizer ‘não’ quando necessário, a pedir ajuda quando não se dá conta de que precisa e a descansar sem culpa. Não caia na armadilha da supermulher: ninguém é auto-suficiente o tempo todo. Permita-se ser cuidada e aprenda a equilibrar o fluxo entre dar e receber, porque é isso que fortalece os vínculos e permite viver relacionamentos saudáveis e mais felizes.

E se sentir que lhe falta algo para se conseguir ter mais auto-amor, auto-estima ou auto-valorização, procure ajuda profissional. Você merece, e quem gosta de si mesma é naturalmente mais amada. Além de que quem se respeita, conquista respeito.

O músico Jorge Palma tem uma letra que diz algo como “a dependência é uma besta / que dá cabo do desejo”, e não poderia estar mais certo. A dependência é uma besta silenciosa, que vai devorando pouco a pouco o desejo e a energia da pessoa que se vê refém dela.

Continuando na leva das citações musicais, também a cantora Lara Li dizia num dos seus temas mais velhinhos: “Altamente complicado / Isto de estar amarrado / Ao cordão umbilical / Não dá para saltar barreiras / Para fazer milhões de asneiras / Prende muito, faz-nos mal”.

Para as filhas que assumem o papel de ‘salvadoras’ das mães, essa besta alimenta-se da constante necessidade de resolver problemas, de dar atenção sem fim, de preencher lacunas emocionais que nunca deveriam ter sido delas para preencher. E, à medida que se perdem nesse ciclo, vão deixando de lado suas próprias necessidades e desejos, como se fossem um eco distante.

O amor (ou será mais uma sensação de pena?) e a preocupação pela mãe, que já deveriam ter encontrado um equilíbrio saudável, tornam-se uma prisão invisível, onde não há espaço para sonhos próprios, para criar e viver relacionamentos saudáveis, ou até mesmo para explorar a própria identidade. O que resta é uma vida amarrada, com os olhos fixos num papel que não é o delas. E, assim, os relacionamentos pessoais tornam-se uma fantasia distante, enquanto o real é uma rotina de sacrifício e renúncia, que só se alimenta a dependência e mata a possibilidade de libertação emocional.

Na minha prática clínica (e não só), percebo que as filhas das mães que se dispõem a esta inversão de papéis e a colar em si mesmas a etiqueta da ‘salvadora’ acabam frequentemente por desenvolver diversos problemas de saúde. Com uma nova perspectiva, essas pessoas podem e devem buscar ajuda, reconhecendo que existem outras formas de cuidar. Colocamo-nos numa posição de omnipotência, e achamos que podemos tudo, mas, na realidade, não podemos.

Quando uma filha cresce aprisionada à mãe, subjugada por uma lealdade que a impede de viver a própria vida, o desejo – de autonomia, de descoberta, de ser simplesmente quem é – vai-se desvanecendo. A dependência emocional transforma-se numa prisão invisível, onde a culpa, o medo, a vergonha, a angústia, sem nome, faz as vezes de carcereiro. Afinal, como desejar livremente quando se passa a vida a servir as necessidades emocionais de outra pessoa, esquecendo-nos por completo das nossas?

Mas é fundamental entender que não está sozinha nesta jornada. E há um caminho para escapar a este laço que aperta. E esse caminho passa por compreender que amor não deveria ser sinónimo de prisão. A autonomia não é ingratidão. Buscar a própria independência emocional, financeira, emocional e psicológica é um direito, não uma traição. O processo de cura implica perceber que não somos responsáveis pelas carências das nossas mães, nem devemos viver em função de as preencher.

A terapia pode ser um passo essencial para quebrar esse ciclo, ajudando a resgatar a própria identidade, redefinir limites e construir uma relação com a mãe baseada no desejo de estar presente e não na obrigação de compensar. Porque o verdadeiro amor materno não deveria pesar, nem cobrar. Deveria ser um solo firme para quem quer criar raízes, mas também leve o suficiente para quem quer voar.

As mulheres precisam encontrar a sua própria autonomia, as suas próprias saídas, sem delegar esse peso para as novas gerações.

E, acima de tudo, as filhas precisam ser livres para serem apenas isso: filhas, e não salvadoras ou “maridos postiços” das suas mães.


Sara Ferreira

Email: apsicologasara@gmail.com

Site: www.apsicologasara.com

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