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Quer insultar uma mulher? Chame-a egoísta

Há algumas semanas, uma paciente minha sentiu chegar ao seu limite. O seu humor andava terrível, a cabeça a mil e sentia que nada à sua volta fazia sentido para si. Estava a viver para os problemas dos outros, para o trabalho, para a rotina, para tudo e todos, menos para si mesma. Foi quando deu por si a chorar incessantemente pelas noites que percebeu que ali estava o seu limite. – “Logo eu, que tão raramente choro…”, referiu-me.

O corpo já lhe tinha dado sinais de exaustão, a total desmotivação para sair da cama, andava numa fase em que saltitava de maleita em maleita; depois, e outra vez mais, lá vinha o choro. Um choro de dor no silêncio quando se tinha, miserável, na sua própria companhia.

Felizmente, a minha paciente percebeu que aquele era o seu limite. Foi ali que compreendeu que estava a precisar de parar, de respirar e de mudar aquilo que a estava a sufocar.

– “Se a capacidade não é suficiente para mudar aquilo que me rodeia, optei então por mudar o meu comportamento perante aquilo que me sufoca”, decidiu. E com esta resolução, cara leitora, quer saber o que se seguiu?

Incompreensão, julgamento, reprovação por parte de quem lhe é mais próximo. E o pior de tudo? Chamaram-lhe o pior nome que alguma vez imaginou (ou desejou) poder receber: EGOÍSTA! Sim, “egoísta”. Pasmem-se os céus e a terra na sua pálida estupefacção.

– “Mas como é que eu posso estar a ser egoísta por me tentar desligar de algo que não me pertence e que só me está a rebentar?”

Pois é. Este é apenas mais um caso dos inúmeros casos em que observo esta mesma realidade. Uma realidade cruel, infame e dolorosa na vida de muitas mulheres: o medo, aliás, o pavor de serem “vistas” como egoístas.

Egoístas por saírem do trabalho assim que termina a sua hora. Egoístas por não quererem mais falar sobre a vida e os problemas dos outros. Egoístas até por aproveitarem os seus momentos de paz a ler um livro (ou a fazer algo que lhes interesse) ao invés de estarem a coser as meias do marido ou a arrumar outras coisas. Egoístas se tiverem outros propósitos na vida senão manter todos à sua volta satisfeitos (às suas custas), menos elas mesmas. Egoístas se não anteciparem o que eles querem ou precisam antes mesmo de pedirem. Egoístas se não investirem todo o seu tempo, energia e recursos para ajudá-los a resolver problemas que lhes caberia aos próprios tratar. Egoístas se eles não estiverem satisfeitos e ainda reclamarem que não estão a fazer o certo. E, sobretudo, egoístas se pararem para considerar as suas próprias vontades e necessidades!

O meu pensamento, nestas situações, teima em surgir-me de explicações sequioso, e o sentimento, bom, esse é de alguma enervação quando bem sei (eu e elas é que sabemos) tudo o que foi preciso acontecer (e sofrer) para activar essa parede invisível apenas com uma “simples” mas ao mesmo tempo tão delicada função: auto-protecção.

Quando não se conseguem encontrar alternativas, outras ajudas, ou quando o “altruísmo” (sem limites) no fim de contas é auto-destruição, será que este proclamado “egoísmo” é mesmo um vilão?

Vejamos. O que diferencia um comportamento razoável de outro patológico é a intensidade, a frequência e grau de prejuízo que causa para a própria pessoa e para os outros. A nossa sociedade não é das mais saudáveis mentalmente, visto que psicopatas são CEO’s, abusadores narcísicos podem ser políticos e o irresponsável/inconsequente é o ‘bon vivant’ incapaz de estabelecer compromissos afetivos ou que vive encostado em casa sustentado pelos pais. Então, o facto é que aquilo que é visto como “virtude” na verdade pode dar indícios de um fundo problemático que ninguém percebe.

E isto para dizer o quê? Que o facto de você ter crescido com a ideia de que o seu valor intrínseco, a sua identidade e até mesmo o seu grau de merecimento pessoal estarem atrelados ao quanto você “faz” pelos outros (lembre-se de que é um ser humano e não um “afazer” humano…) não significa que isso seja natural ou sequer saudável para si ou para os demais.

A virtude é sempre um comportamento opcional, como alguém que poderia ficar parado, mas prefere “ajudar” / fazer pelos outros. Ou seja, tem liberdade real de fazer uma coisa ou outra. Agora, se a pessoa não tem a opção de se abrir e ter outro comportamento, então o facto de se “ter de” ajudar/fazer não é uma virtude, mas uma prisão psicológica.

Esta é a diferença, por exemplo, entre a pessoa “boa” e a “boazinha”. Uma pessoa de bom coração sabe exatamente quando deve ou não ajudar a outra e sabe posicionar-se sobre a sua capacidade de beneficiar ou dar um basta. Já as “boazinhas” podem ter um comportamento submisso, passivo e dependente da aprovação de outras pessoas. Fazem o bem mais por medo, covardia ou falta de opção do que por virtude. Na verdade não se sabem posicionar e enfrentar as pessoas de frente. Inclusive, podem ser portadoras de Transtorno de Personalidade Dependente e nem saber que na verdade se submetem por não ter capacidade de seguir as suas próprias escolhas. E como se não bastasse, esta situação de dependência e submissão passiva torna estas pessoas particularmente vulneráveis a violência e abusos.

Não ajuda se tivermos crescido rodeado(a)s de pessoas pouco empáticas, pouco suportativas, com padrões fortes de apego ao trabalho, que não cuidavam de si e viam o prazer como uma coisa secundária ou algo até mesmo a evitar.

Muitas mulheres, por diversas questões socioculturais, dedicam-se a agradar os outros, ignorando os seus próprios desejos e necessidades. E sentem uma culpa avassaladora quando (e muitas vezes, apenas porque se vêm no limite…) têm de dizer “não”. Soa-lhes a algo pecaminoso, como se estivessem a cometer um crime, e tudo pelo simples facto de nunca terem sido apoiadas a desenvolver autonomia emocional/psicológica ou a verem os seus limites, enquanto pessoa, respeitados nos seus vínculos mais significativos.

Quantas vezes na sua vida você se dedicou mais a ajudar o outro no seu próprio processo do que se focou em si mesma? E sabe o que é que é mais doido? Confundimos isso com altruísmo, com ser “boa pessoa”, com fazer o “bem”. Não é. Muitas vezes, é só alimentar o ciclo vicioso (e viciado) de desresponsabilização própria e alheia. Muitas vezes, é só distrair-se das próprias dificuldades e da própria “impotência” através do cuidar do outro. O medo de olhar para si mesma e assumir o seu poder pessoal expressa-se de várias formas. Esteja atenta.

As mulheres que sofrem dessa compulsão não são apenas as que se desdobram para garantir que todos à sua volta estão “felizes”. Na verdade, aquelas que padecem desta “síndrome de Wendy” passam por um sofrimento quotidiano ao esgotarem o seu tempo e a sua energia a realizar tarefas desnecessárias apenas porque não sabem dizer “não”. Quando ajudar os outros se torna um comportamento compulsivo e não se consegue negar pedidos e exigências feitas por terceiros, a vida torna-se um exercício diário de frustração e ressentimento. E depois espantam-se muito quando “depois de tudo o que eu fiz por ti” ainda lhe cospem na cara que é “egoísta”, sem obterem o reconhecimento que tanto almejam…

Enquanto esta mulher não perceber como está perdida num jogo emocional infantil de agradabilidade excessiva não conseguirá estabelecer relacionamentos de verdade. Ela será julgada, cobrada, criticada, insultada e convencer-se-á de que o tratamento que recebe é devido, por “ainda” não ter feito o suficiente… não fez por merecer, é frequentemente descartada das relações, o afecto é-lhe retirado (eventualmente descobrirá a dura, mas libertadora, verdade de que o que as pessoas “gostavam” afinal era da função que ela servia e não propriamente “dela “…) até encontrar outro alguém aonde o ciclo recomeça com mais intensidade. Para garantir que não será deixada novamente, forçará ainda mais a barra convencida de que dando tudo de si poderá garantir o “sucesso” da relação.

A nossa agradadora compulsiva mórbida quando precisa dizer “chega” transfigura-se aos olhos dos outros na mais execrável “egoísta”, e a “boazinha” que ela um dia quis ser depara-se enfim com a gloriosa oportunidade de começar a ser apenas boa. Estabelecendo novos parâmetros na vida, afinal está farta e (não raras vezes) toda destruída por ter sofrido tanto deste mal. Ela começa a identificar os momentos em que os outros abusam da sua bondade e a mostrar que a própria aprovação é muito mais importante do que a de qualquer outra pessoa. Ela perceberá que viver de forma equilibrada, levando a opinião dos outros em consideração, sem que ela tenha necessariamente que se sobrepor à sua vontade, é a melhor maneira para ser saudável e feliz.

Focar em si mesmo(a) não significa negligenciar os outros. Significa cuidar de si para que possa relacionar-se com os outros a partir do seu “Eu” mais autêntico.

E o mais paradoxal? A sociedade vai dizer-lhe que você tem que se privar completamente de si mesmo(a) para ser humilde e não egoísta, aka, “boa pessoa” enquanto glorifica aqueles que têm em excesso.

Quanto mais você gosta que os outros a vejam como uma pessoa “boazinha”, mais difícil será dizer “não” aos abusadores. Quanto mais você gosta que os outros a vejam como uma pessoa abnegada, generosa, um mártir ou um salvador… mais difícil será abrir mão desta identidade. As pessoas “boazinhas” são, frequentemente, pessoas naturalmente generosas que hiperinvestiram nesta característica para apaziguar o comportamento de pais ou parceiros tóxicos/abusivos. Enquanto crianças, estas pessoas descobriram que, agradando ao próximo, as suas necessidades seriam menos negligenciadas e receberiam menos desafeto ou abuso.

É difícil abrir mão do mecanismo que permitiu que você sobrevivesse emocionalmente no passado. No entanto, é importante perceber que no mundo das pessoas crescidas, existem novas regras: às vezes, é necessário ser “malvada(o)” para sobreviver no mundo dos adultos! Quando digo “malvada(o)”, quero dizer apenas isto: você não tem como agradar a todos, o tempo todo, e nem deve focar-se nisso.

Uma vez que as relações das pessoas “boazinhas” ou agradadoras existem através de regras condicionais, estão fadadas a serem relações desiguais. As relações desiguais existem quando falta reciprocidade. Esta é a componente essencial das relações adultas saudáveis, onde o verdadeiro egoísmo/egocentrismo ganha pouco espaço e conseguimos manter relações equilibradas e com respeito às nossas necessidades e também às dos outros, de forma igualitária.

Assim, se você aguentar perder a imagem auto-sacrificial que sempre teve, vai finalmente criar relações mais equilibradas.

As pessoas vão sempre dar-vos muitas opiniões sobre como se deve viver e o que se deve fazer. Inclusive eu que, como toda(o)s, também fui condicionada e por isso algumas vezes (no “automático”) digo coisas de acordo com crenças limitantes. Porém, percebam que cada um(a) de nós, dentro de si mesmo(a), tem uma Voz interna, uma bússola orientadora, com a qual nos podemos sintonizar. Ela oferece-nos muitas respostas, se a soubermos escutar. Aprendam a reconhecer essa voz e sigam-na, independentemente de tudo. Mesmo que vos chamem egoístas.

Chamarem “egoístas” uns aos outros foi uma forma eficiente que as pessoas arranjaram de trazer de volta à carneirada qualquer ovelha que tenha um rasgo de individualidade ou independência. A mulher precisa ser vista enquanto pessoa e não enquanto função.

Não é egoísmo. É amor-próprio. É maturidade. É auto-preservação: uma necessidade básica para a vida (biológica e psíquica) poder existir em mínimas condições.

E a verdade? Nos incontáveis casos semelhantes a este que já segui, a verdade é que as pessoas começam logo a sentir-se mais leves, mais tranquilas, mais vitais. Começam novamente a sentir vontade de viver, de aproveitar um bocadinho aquilo que existe de bom na vida. A ansiedade generalizada começa a desaparecer, mas para isso precisam tomar algumas atitudes das quais inicialmente “não se orgulhavam”, mas que mais tarde descobrem que foram cruciais para que agora, finalmente, se consigam sentir melhor.

Sara Ferreira

Psicóloga Clínica (Cédula Profissional Nº 10418)

Terapeuta Credenciada pela Federação Europeia de Associações de Psicólogos (PT-052503-201907)

Gestora de Formação e Formadora Certificada (CAP N.º EDF 46361/2005)

Técnica de Saúde Certificada pela Ordem dos Psicólogos Portugueses na prestação de Consultas de Tele-Psicologia (Online)

Escritora

Contactos:

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