

Há uma grande anedota no cosmos da vida, e ela começa assim: estavam as pessoas a ver navios e a passar anos à procura de amor. Sonhavam com aquele relacionamento perfeito — alguém que os entendesse, os cuidasse, que fosse a sua fortaleza emocional. Falavam sobre isso com os amigos, visualizavam as cenas dos filmes românticos e até acreditavam que, finalmente, estavam prontos para receber o “amor verdadeiro”. Mas, quando esse amor genuíno aparecia, o que faziam? Destruíam-no. Com a precisão cirúrgica de quem desarma uma bomba e explode tudo. De propósito. Ou, pelo menos, é isso que parece.
Mas antes que comece a pensar que isto é apenas um caso de “medo de compromisso” ou “pavor de vulnerabilidade”, deixe-me esclarecer uma coisa. Por detrás dessa sabotagem romântica ou nas amizades, não está apenas o desejo de ser dramático (embora o drama tenha, por vezes, o seu charme), mas sim um enredo muito mais profundo: a crença de que simplesmente não mereciam ser amadas.
Sim, estou a falar consigo. Ou talvez de mim. Mais provavelmente, de todas nós. Ou de qualquer pessoa que, em algum momento, já se perguntou: “mas porque é que eu arruinei aquele relacionamento tão bom?” A resposta, ao contrário do que possa pensar, não está no outro — na sua suposta perfeição insuportável ou no facto de serem “areia a mais para a sua camioneta” — mas sim em si mesma, no seu subconsciente a gritar: “foge enquanto é tempo, porque a felicidade é uma armadilha!”
Porque a questão aqui é que fomos socializadas para esperar pouco, especialmente das nossas relações. Há uma narrativa silenciosa, mas poderosa, que nos diz que o amor verdadeiro, aquele que é constante, seguro e confiável, não existe. Pior ainda, se existe, não é para nós. A sociedade — e as nossas experiências pessoais — ensinaram-nos a associar afecto com dor, e carinho com perda. Como resultado, aprendemos a viver num estado de alerta constante, sempre prontas para evitar o sofrimento iminente.
Bizarro? Pois bem, deixe-me fazer-lhe um tour pela ciência que explica este comportamento. Na psicologia, chamamos a isto de auto-sabotagem. Este conceito está intimamente relacionado com algo chamado “esquemas maladaptativos precoces”. Ou seja, padrões de crença e comportamento que se formam na nossa infância (obrigada, papás!) e que continuam a sabotar as nossas relações na vida adulta. Quando acredita que não é digna de amor, o seu cérebro entra em modo de auto-preservação — sabotando qualquer coisa que desafie essa percepção. Afinal, se foi condicionada a sentir que amor e afecto nunca vêm sem dor ou abandono, é difícil acreditar que algo bom possa ser verdadeiro ou duradouro.
E, aqui, é justo invocar a sabedoria de Melanie Klein, uma das vozes mais profundas da psicanálise. Klein falava dos “objectos internos” — ou seja, das primeiras experiências emocionais que internalizamos na nossa infância, fruto da vinculação com esse “grande outro” materno/paterno. Se esses objectos eram disfuncionais — por exemplo, em relações cheias de abandono, negligência, violência emocional/física ou amor condicionado — então internalizamos essa expectativa como o padrão do que merecemos. E o que acontece quando, já na vida adulta, alguém nos oferece algo diferente? Bem, ao invés de relaxar, agradecer e desfrutar, entramos em pânico.
De repente, aquele amor saudável que uma pessoa tanto desejava começa a parecer uma armadilha.
Vamos a um exemplo prático, porque sabemos que todas adoramos lavar as vistas num horizonte alheio de desgraça relacional que nos dê uma luz fria de auto-reflexão (e comiseração). Imagine que finalmente conhece alguém que a trata bem. Alguém que a respeita, ouve e valoriza. Você, por outro lado, sente uma inquietação crescente — e não, não são borboletas no estômago, é terror puro. O seu primeiro instinto? Desconfiar. “Porque é que esta pessoa me trata tão bem assim? Deve ser tonta! O que será que ela vê em mim (de bom)?? O que é que quer de mim!?” E assim começa o ciclo. Afasta-se, provoca discussões sobre nada, cria cenários de desaire, crítica, desprezo, só para que possa destruir antes que eles o façam. E pronto, o gatilho está accionado. Passa de alguém carente de afecto para alguém em modo de sobrevivência total, sempre à espera da desilusão que, acredita o seu subconsciente, está inevitavelmente a caminho.
Como é possível que tanta gente passe pela vida a tentar fugir do que, teoricamente, mais deseja? A ciência psicológica tem uma explicação. A ideia de auto-sabotagem não surge de um desejo de sofrer, mas sim de um padrão de sobrevivência emocional antigo como o mundo (emocional de cada um(a)).
E sim, claro, tudo tem a ver com o cérebro. A amígdala — esse belo pedaço de tecido cerebral que nos mantém em alerta para as ameaças — é a responsável por muitos dos nossos medos mais irracionais. Quando o amor nos parece uma ameaça, ela activa o “modo de defesa total”. Em termos simples: se nunca soube o que é receber amor incondicional, qualquer acto de afecto genuíno parecerá no mínimo estranho, para não dizer (e na verdade é mais isso) perigoso. Como resultado, sabotamos para restaurar o caos que nos é familiar. Afinal, é “melhor o inferno conhecido do que o paraíso desconhecido”, não é?
Aqui é onde a coisa fica mais trágica (ou hilariante, dependendo do ponto de vista). O que fazemos, na prática, é recriar o mesmo ambiente emocional destrutivo que tanto nos magoou no passado, porque é isso que conhecemos. É, mal ou bem, é com isso que sabemos lidar! Se você cresceu com desamor, a sua tendência inconsciente será procurar, ou pior, criar cenários de desamor. Porque, para o seu sistema nervoso, dor é mais familiar (e, portanto, mais segura) do que amor.
E porque fazemos isto? Porque o nosso superego (ou aquele hitlerzinho interno irritante) continua a sussurrar: “não mereces esse amor. Vais estragar tudo. Vais ser punida. A pessoa vai conhecer quem realmente és e não vai mais gostar de ti. Vai-te abandonar.” E, claro, como não queremos lidar com essa culpa iminente, optamos por destruir a relação antes que ela tenha a oportunidade de nos destruir.
A grande ironia aqui é que estamos a recriar o caos emocional que jurámos para nunca mais. Se crescemos num ambiente de desamor, trauma ou rejeição, o amor seguro pode parecer uma mentira. Sabemos o que fazer com a dor; aprendemos a lidar com o desapontamento. Mas o que fazer quando alguém nos trata bem? Isso, queridas amigas, é o verdadeiro enigma. Porque, muitas vezes, a dor parece menos arriscada do que a possibilidade de ser amada e depois perder esse amor.
Receber amor genuíno pode ser terrivelmente assustador. Para quem nunca o conheceu de perto, o afecto parece uma invasão, um desconforto. Dá vontade de gritar: “sai daqui, ó peste, antes que eu me acostume!”. Porque o medo não está apenas em ser amada, mas em habituar-se a isso e, depois, ter de lidar com (o que se assume que será a posterior e inevitável) perda. Então, a lógica distorcida da sabotagem emocional entra em acção: “melhor nunca ter tido do que perder.”
Repetimos padrões dolorosos porque há algo não elaborado que nos mantém presos ao que magoou. Freud chamou a isso de pulsão de morte, uma tendência a reviver o sofrimento. A solução? Falar, escutar, simbolizar, elaborar.
A verdade é que não precisamos ficar aqui a chafurdar no rancor, na raiva, inveja, ressentimento, insegurança. Carregamos esses sentimentos sombrios como bagagem invisível, e, sem perceber, começamos a projectá-los no outro.
Há esperança — mesmo para os “saboteurs” crónicos. O primeiro passo é perceber que o problema não está no outro, nem mesmo no relacionamento. Poderá estar profundamente enraizado em si. Na sua história, nas suas crenças. E, por mais desconfortável que isso seja, esse reconhecimento é libertador. Porque significa que poderá, sim, reescrever o guião.
Aqui entra a pergunta provocadora: e se o verdadeiro desafio fosse aprender a suportar o amor? A frustração, a instabilidade, o descaso, a rejeição — esses são terrenos familiares. Já sabemos como navegar essas águas. Mas e o amor? Ah, o amor. O amor não morreu e exige que façamos algo muito mais difícil: sermos vulneráveis, sermos vistos, permitir que o outro nos conheça em profundidade, com todas as nossas falhas, as nossas inseguranças, e ainda assim nos aceite (que nos ame). Isso sim, é como nadar contra a correnteza das cataratas do Niágara.
Aproveite esta onda de reflexão e já agora pergunte-se também: “isto é sobre o que estou a sentir agora, ou é um reflexo de algo antigo?” Muitas vezes, a auto-sabotagem vem de um lugar de medo, muito medo — o medo de que se se permitir ser amada, algo mau vai/pode acontecer. Spoiler: não vai. A não ser que realmente você faça acontecer.
Sabotamos não porque gostamos de dor (pelo menos a um nível “consciente”), mas porque não sabemos lidar com o amor genuíno. A maioria de nós cresceu com o sentimento de que amor e dor são dois lados da mesma moeda, e, por isso, frequentemente rejeitamos aquilo que mais desejamos: a conexão genuína.
Neste ciclo interminável de auto-sabotagem, a questão crucial torna-se, pois, a seguinte: como podemos aprender a suportar o amor, em vez de temê-lo? A primeira etapa é reconhecer que estes sentimentos de insegurança e inadequação não definem quem somos. Devemos confrontar as nossas “vozes” internas, tirânicas e estridentes, que há já muito berram que não somos dignos. Este é um trabalho pessoal que exige coragem e, muitas vezes, a ajuda de um terapeuta que possa guiar-nos por este caminho meio nebuloso.
Em terapia, temos a oportunidade de explorar todos os nossos afectos — mesmo aqueles que mais tememos. Precisamos falar sobre a raiva que sentimos, não só em relação aos outros, mas também a nós mesmos. A inveja, que pode parecer um sentimento vergonhoso, é uma emoção que, quando bem compreendida, pode iluminar as nossas inseguranças. Dando voz a essas ambiguidades, podemos lentamente desmantelar o nosso medo do amor. E o nosso medo de amar.
Medo de amar, como quem diz “automaticamente” medo de se magoar, é o mesmo que deixar de beber água por se ter engasgado no jantar de ontem.
Há um paradoxo muito curioso, sabe? O desapego necessário para a desilusão só é possível a partir de uma base sólida. Uma pessoa sem uma estrutura emocional suficientemente capaz encontra muito mais dificuldades de se “lançar” à (re)descoberta ou mesmo de sobreviver a um voo em queda livre, pois sente que lhe falta um “casulo” para onde regressar.
Mas se a substância que nutre e nos liga à vida são os afectos e isso acontece mediante a conexão e as trocas que geramos com as outras pessoas, esse é o “casulo” ao qual precisamos voltar.
Porém, a verdade é que um congelamento interno demasiado prolongado faz-nos sobretudo correr o risco de limitar agudamente a nossa experiência de vida. Evitar situações que, para nós, possam expor-nos à perda ou à rejeição acaba por conduzir-nos, justamente, à perda ou à rejeição. Por um lado, uma pessoa proíbe-se de viver certas experiências devido ao medo de voltar a sofrer (o que é “normal” e compreensível, porém, um verdadeiro ‘felicídio’), mas por outro lado espera que esse seu medo possa reduzir com a passagem do tempo, o que, na verdade, acaba por não acontecer, pois é precisamente esse evitamento que faz manter o medo presente.
Receber amor (na forma dos seus mais diversos derivados), para quem nunca o conheceu de perto, pode ser uma verdadeira montanha-russa emocional. É um acto de coragem, um salto no desconhecido. A primeira vez que se sentir confortável com o afecto genuíno, pode parecer uma invasão. Mas, como qualquer boa terapia, é também um convite a repaginar, a rever e a ampliar a relação que tem consigo mesma. A ideia de que o amor é seguro e desejável começa assim a poder formar-se.
Afinal, o que é mais doloroso? Viver a vida inteira a evitar o amor ou arriscar-se a amá-lo e, quem sabe, perdê-lo? Viver sem amor pode parecer menos arriscado, mas na verdade é uma prisão invisível. O amor, com todas as suas complicações, é a única coisa que nos lembra de que estamos vivos.
Então, quando se vir a pensar em correr ou a preparar com o costumeiro afinco a próxima sabotagem, pare para respirar por um momento e pergunte-se: “Estou a correr do que realmente desejo?”
Permitir-se amar, e ser amada, pode ser o maior desafio da sua vida, mas também pode ser a fonte da maior alegria. Porque, no final, o amor é o que nos liga a esta experiência humana tão rica e complexa. Não é a ausência de dor que define uma vida plena, mas a coragem de abraçar o amor, com todas as suas tretas, milagres e imperfeições.
Sara Ferreira
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