[wlm_register_Passatempos]
Siga-nos
Topo

O potencial subversivo da amizade entre as mulheres

Já alguma vez se perguntou porque será que as mulheres não têm sociedades secretas? Ou porque é que a delação é um pecado “capital” nos presídios masculinos? Ou ainda porque é que não é incomum, por exemplo, ver um homem a dar cobertura ao cunhado em frente à própria irmã num episódio da mais alta sacanice?

Descoberto o conluio, o irmão-comparsa defende o indefensável: “eu já sabia, mas guardei segredo porque não me meto na vida alheia”, revelou-me uma vez certo paciente. E assim segue inabalável a fraternidade, mais blindada que um bunker da Gestapo.

A solidariedade masculina manifesta-se numa cumplicidade que muitas vezes roça o corporativismo. Exacto, ao longo de séculos, a nossa cultura levou muito à letra o lema da revolução francesa de “liberdade, igualdade e fraternidade”, esquecendo-se só de incluir “sororidade” para equilibrar os pratos, afinal, se há coisa que a solidariedade masculina e as relações de poder hierárquicas têm favorecido de maneira igualitária é a exclusão e repressão histórica das mulheres na sociedade.

Apesar dos avanços sociais e da independência financeira que as mulheres têm conquistado ao longo das últimas décadas, ainda há muitas questões a melhorar quando falamos de igualdade de género. A Organização Mundial da Saúde (OMS) elencou alguns dados, que em pleno séc. XXI, deveriam ser mais do que preocupantes (mas, diria eu, bastante sintomáticos): 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza e exclusão no mundo são mulheres; pelo menos 6 mulheres são assassinadas a cada hora em todo o mundo, vítimas de feminicídio; uma em cada três mulheres sofre algum tipo de violência ao longo de sua vida; calcula-se que 100 milhões de meninas casar-se-ão antes dos 18 anos e 14 milhões de adolescentes serão mães; no mundo, morrem mais mulheres entre 15 e 44 anos vítimas de violência machista do que de cancro ou de acidentes de viação; somente em países como a Noruega, a Suécia e a Finlândia as mulheres alcançam taxas de participação superiores a 40% nos governos; 49% dos infectados no mundo por HIV são mulheres; 80% do trabalho não remunerado (cuidados do lar e aos filhos, voluntariado, etc.) são as mulheres que realizam; 93% das vítimas de violência doméstica são as mulheres; meio milhão de mulheres morrem a cada ano, no mundo, por gravidez; entre outros indicadores.

O atualmente tão falado conceito de sororidade é criado quando se toma consciência de que a noção de fraternidade tem como raiz “frater” – irmão. Nesse sentido, o lema que citei, “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, indica – etimologicamente – que a ideia de união e harmonia é exclusiva aos irmãos (homens, portanto). A sororidade consiste numa resposta igualmente etimológica, já que é composta pelo termo latino “soror” – irmã.

Esta palavra pode ser definida pelas relações de amizade criadas com a intenção de conscientemente se oporem à (suposta) rivalidade existente entre mulheres, incentivada (e naturalizada) pelo sistema patriarcal da nossa sociedade (e que não é de agora).

E porque é que isto importa? – Perguntarão as minhas amigas leitoras.

Porque se queremos falar de temas que impactam directa e indirectamente a nossa vida, as nossas relações, a vida profissional, a nossa saúde mental, emocional, física, sexual, espiritual, em resumo, tudo o que importa, precisamos reflectir um pouco sobre como é que funciona a nossa estrutura social. E um dos pilares que (ora de formas mais evidentes ou mais veladas, consoante os tempos) a tem fundado é a misoginia, o machismo estrutural e o regime patriarcal. Ou seja, o patriarcado como detentor do poder financeiro, económico, político, cultural, religioso, social, etc. (sem falar das doutrinas e dogmas ultrapassados de uso (ainda) corrente através dos quais ele se difunde).

É muito fácil perceber isso quando olhamos à nossa volta. As mulheres ganham menos do que homens, mesmo quando ocupam o mesmo cargo do que os seus colegas (e tendo, em média, mais 7 anos de escolaridade do que eles); entre vários outros exemplos possíveis, que se os enumerasse a todos ficaria a escrever até ao fim do ano, mas que denunciam as desigualdades estruturais e profundas com base na descriminação de género, em Portugal e no mundo.

Esta estrutura gera, consequentemente, alterações basilares no comportamento da sociedade. Isso afeta gravemente as meninas que, tendencialmente, e desde a primeira infância, são condicionadas a competirem entre si e a viverem numa constante situação de rivalidade. Aqui entre nós, vai dizer-me que você nunca viveu ou presenciou alguma situação do tipo?…

O objetivo do conceito de sororidade é modificar essa realidade, fazendo com que as mulheres se vejam como companheiras e não como rivais.  A ideia é fazer com que esta população una as suas forças em prol das questões femininas, como o combate à misoginia, ao feminicídio, ao assédio sexual, à violência doméstica, à cultura da violação, à maternidade compulsória, às desigualdades no acesso às oportunidades, entre muitos outros micro e macro abusos que quotidianamente nos desqualificam como cidadãos de plenos direitos, independentemente de género, etnia ou orientação sexual.

É relevante notar que esse estereótipo de género chamado “rivalidade entre mulheres” e consequentes comportamentos trouxe diversos efeitos para o processo de socialização das mulheres, tais como um maior desmerecimento dos seus trabalhos, julgamento umas das outras por características físicas ou de indumentária, busca por validação masculina, a introjeção de um sentimento de que a sua auto-estima ou senso de valor próprio está associado aos homens que conseguem “atrair” e manter para um relacionamento, entre outros. Quase toda(o)s nós já ouvimos frases como “Não dá para confiar em mulheres” ou “as mulheres são invejosas / falsas / mentirosas / intriguistas”, ou “as mulheres arranjam-se umas para as outras”, etc., etc.. Frases como essas produziram nas mulheres um efeito de auto e hetero sabotagem, fazendo com que elas não se reconheçam em e através de outras mulheres e mantenham essa competição/suspeição/hostilidade permanente.

Dessa forma, a sororidade ou a amizade/união entre as mulheres é importante para perceber esse comportamento e, colectivamente, eliminar este padrão que foi desenvolvido e que, na essência, não é mais do que uma táctica, amplamente conhecida nas dinâmicas de poder, de controlo e manipulação chamada “isolamento” ou “triangulação” (o célebre “dividir para reinar” anyone?) com vista a desmantelar o núcleo interno e externo de conexão, empatia, autenticidade, harmonia, entreajuda e confiança das mulheres. Pelo contrário, incentivando-as a projectar (muitas vezes, inconscientemente) o oposto umas nas outras: desconexão, julgamento, frustração, descontentamento, ataque e desconfiança. E, claro, condenação e exclusão.

Adicione-se ainda um “bónus” extra patriarcal: as mulheres, quando sozinhas, encontram-se numa posição social de grande dificuldade para serem ouvidas, vistas, legitimadas ou sequer levadas a sério (afinal também somos todas umas “loucas”, não é?), fazendo com que as suas reivindicações e denúncias sejam invalidades e descredibilizadas. O acto de união e solidariedade entre as mulheres transporta necessariamente mais força (individual e de grupo), possibilitando movimentar e consequentemente transformar a estrutura social (que subsiste violenta, injusta e desigual para muitas – também – por conta da nossa própria aquiescência…sad but true).

Ensinam-nos que para sermos “plenas” e “inteiras” precisamos encontrar aquele “príncipe” pseudo-perfeito que nos tire o fôlego e o foco de todos os outros interesses e nos “arrebate” por completo. Pois… algumas vezes um charmoso destes até pode chegar, de mansinho, puxando-nos uma cadeira para sentar, mas automática e inconscientemente tendemos a pensar que não é amor porque isso não tem a cara de uma “paixão desenfreada”…

Os vínculos afetivos ou de amizade são das poucas formas de relações interpessoais que não estão sujeitos aos modelos e regulamentações ditados pela lei. Ainda que estes vínculos também tenham sido afetados pelas restrições sociais impostas pela pandemia, vale a pena apostar em criá-los e mantê-los. Como sabemos, as crises globais por que temos passado têm feito disparar os casos de ansiedade, depressão, angústia, sobrecarga, stress, abuso e violência contra as mulheres; muitos deles desencadeados ou agravados no contexto doméstico e dos relacionamentos íntimos com os seus companheiros.

Esqueça as mentiras que lhe contaram e pense em alguém que, numa situação de vida delicada como estas, seria mais provável estar ao seu lado. Qual a possibilidade de ser uma mãe, uma irmã, uma vizinha, uma terapeuta, uma amiga, uma mulher?

Então, querida leitora, entenda a palavra “sororidade” e a importância dela no mundo atual.

A amizade entre mulheres é potencialmente subversiva e um “perigo” para os alicerces da estrutura de poder vigente. As amizades não possuem formas predeterminadas e controláveis, à partida, e juntas com as nossas subjetividades podemos ir-nos “trabalhando” (o que inclui momentos de lazer em comum, mas também questionamentos profundos). As amizades permitem também um desenvolvimento crítico da individualidade e da criatividade e dos laços de comunhão e entreajuda. E estes vínculos permanecem, apesar das dificuldades, sendo inclusive fortíssimos fatores promotores (e protetores) da saúde mental.

Acredite, todo(a)s nós podemos intuir o quanto isto é importante, mas digo-lhe eu aqui que, literalmente, pode salvar vidas!

As mulheres não são falsas, não são rivais, invejosas ou interesseiras. Nada disso é intrínseco à condição feminina. Assim como os homens, as mulheres experimentam todos os tipos de sentimentos, sejam eles bons ou nem por isso. Joguinhos emocionais, falta de ética e de carácter surgem em qualquer situação, pois são falhas humanas e não exclusivamente das mulheres.

Sororidade é entender a outra mulher como humana, imperfeita e por isso mesmo, incrível. É respeitar as escolhas de outra mulher, sem julgá-la, mesmo que sejam escolhas diferentes das suas. É a capacidade de se colocar verdadeiramente no lugar da outra mulher e não querer diminuí-la para se sentir bem, reforçando estereótipos. É apoiarmo-nos e tratar as outras mulheres como gostaria de ser tratada. É, sim, ter empatia e acolhê-la para que se sinta cada vez mais forte. E você também. Porque isso gera um efeito forte de maior capacitação e fortalecimento, tanto para quem dá como para quem recebe.

Sororidade para fortalecer laços e superar opressões históricas. Não há pecado. Nem na maçã, nem na barriga, minhas flores. Há escolhas. Há libertação.

A ideia de apoio, aliança e não julgamento entre as mulheres vai de encontro à ideia de inclusão, bem-estar e coesão social, contrariando as condutas patriarcais que ainda hoje remanescem. E o mais incrível? Descobrirão que as mulheres são como as águas, crescem quando se juntam.

Discutir as discriminações, assédios e violências morais, psicológicas, emocionais, físicas e sexuais ainda sofridas (na sua maioria, dentro do próprio lar, no seio familiar) é fundamental para impedir que retrocessos – como os que se assistem – ameacem o que já foi alcançado com muita potência e luta, suor, inteligência, sangue e a própria vida.

Mudar a estrutura social, cultural, falarmos abertamente sobre feminicídio, cultura do abuso e da violação (sabem aquela musiquita, aquele anúncio aquela “brincadeira” parva, aquele envio de fotos não solicitadas, aquela piadola, aquele fiu-fiu no meio da rua? Pois é…), múltiplas violências (que têm por base o desrespeito e profundas assimetrias na relação de poder entre os géneros) – tantas vezes veladas – que precisam ser expostas para se tornarem visíveis e, principalmente, tratadas e sanadas.

Sororidade para não mais invalidar e silenciar mulheres, como eu, você e todas nós, porque podemos e devemos comunicar os nossos sentimentos e buscar a cura para as dores emocionais sentidas toda a vida. Para atravessar todo o sofrimento histórico que se aloja em muitos úteros, em muitos corpos, em muitas mentes, na nossa alma coletiva. Precisamos de interajuda, de suporte mútuo, de sororidade, e de uma sociedade que reconheça, que acolha mais, pois acolher é aceitar e abençoar a vida. Todas, todos, todes fomos postos neste mundo pelo ventre de uma mulher. Assim sendo, a misoginia também pode ser entendida como a aberração do não reconhecimento e grotesca distorção do que é, de facto, sagrado.

A forma de conduzir a vida numa sociedade em que a energia feminina se equilibra com a energia masculina é diferente, e representa uma mudança na estrutura cultural. É uma oportunidade de transformação social jamais vista, para a qual precisamos de muita coragem: acolher, agregar, educar, fazer florescer, potencializar, diversificar, crescer, amar, preservar, cuidar, criar, oportunizar, agradecer, posicionar. É a libertação dos nossos corpos e mentes para a construção de um coletivo saudável.

A humanidade está saturada do excesso de energia masculina (ou melhor dizendo, da “masculinidade tóxica”) no mover das decisões e ações que regem os grandes acontecimentos do mundo. É urgente o equilíbrio, a harmonia, e para isso o feminino precisa romper barreiras e avançar, o que depende da força e do posicionamento, principalmente, das próprias mulheres.

Invoco assim o amor-próprio, a potência subjetiva, os elos de força, competência e sabedoria que nos foram roubados durante séculos, despindo-nos de tabus, de toda a repressão, de todo o silenciamento.

Quando o isolamento fragmenta e as violências de um sistema patriarcal dividem e fragilizam, submetendo a humanidade a um “salve-se quem puder” constante, qual o valor adquirido pela amizade entre as mulheres?

Atitude e coragem estendidas a todos os seres humanos, pois o equilíbrio entre “feminino” e “masculino” na nossa psique é absolutamente inerente e fundamental para a paz que, especialmente nestes tempos, tanto almejamos no Planeta.

Sara Ferreira

Psicóloga Clínica (Cédula Profissional Nº 10418)

Terapeuta Credenciada pela Federação Europeia de Associações de Psicólogos (PT-052503-201907)

Gestora de Formação e Formadora Certificada (CAP N.º EDF 46361/2005)

Técnica de Saúde Certificada pela Ordem dos Psicólogos Portugueses na prestação de Consultas de Tele-Psicologia (Online)

Escritora

Contactos:

968147357

https://www.facebook.com/apsicologasara

https://www.apsicologasara.com

Veja mais em Opinião

PUB