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Todas as pessoas são bonitas, as modas é que não

Há muito tempo que vivemos inundados por narrativas de sucesso centradas nos ideais irreais de transformação da aparência física e dos procedimentos estéticos. Eu, tal como muitas mulheres que hoje acompanho em terapia, sobrevivemos precariamente à cultura do “makeover” da década de 90, por exemplo, na qual as crianças, jovens e adolescentes foram criadas com a ideia de que emagrecer, remover aparelhos dos dentes, mudar certas características e conformar-se com o padrão predominante as tornaria felizes.

Por incrível que pareça, décadas depois, ainda percebo os efeitos nocivos de todas estas expectativas e a forma como moldaram na crença de muitas mulheres um ideário anorético de beleza física que as fez e faz ainda hoje debater-se com questões de auto-estima, auto-aceitação e imagem corporal.

É aquela conhecida sensação de que ao alterarmos a nossa aparência externa, resolveremos automática e magicamente os nossos conflitos internos. Contudo, surge a pergunta: até quando continuaremos a comprar essa ideia?

Para piorar as coisas, nas redes sociais é comum esbarrarmos em fotos de “Antes e Depois” (que comparam apenas a aparência das pessoas, deixando de lado a saúde física, já para não falar da saúde mental…) e em imagens de corpos retocados, completamente distorcidos e alterados pela tecnologia que, como sabemos, têm criado uma espécie de disforia geral em meninas e mulheres, levando-as a perder, literalmente, a vida no afã de uma insana correria para a mudança drástica no seu visual.

Os corpos irreais infernizam a nossa imaginação (e isso não é só de agora), além de que estão a fazer com que muitas pessoas pura e simplesmente percam a noção do normal e do esperado.

A beleza-padrão e a mudança estética sempre nos foram vendidas como ponto de viragem para a felicidade feminina.

Mas afinal, quem é você? Um ser real ou a busca incessante pelo “eu” ideal?

Um dos passos mais importantes que podemos dar para uma vida mais plena e feliz é o denominado “auto-amor”, que é o gostar de si próprio, acolher-se, aceitar-se, respeitar-se naquilo que é (ou não é). Quantas de nós vivem numa eterna (e insatisfatória e inglória!) procura pelo corpo ideal, na tentativa de ser alguém para além de quem se é de verdade?

Os seus conceitos de beleza, foram importados de onde? Ditados por quem? O tipo de beleza na qual você acredita pode ser de facto alcançável? Viável? Verídica?

É amplamente reconhecido que cada indivíduo nasce com um corpo único e exclusivo. No entanto, na era da cultura “fitness xtreme”, parece que este conceito foi esquecido, e muitos acreditam que podem moldar os seus corpos como desejam, simplesmente com ‘força, foco e fé’.

O aspecto problemático por detrás desse discurso de moldar o corpo é que ele apresenta-se sob a roupagem de “ vida saudável”. Assim, quando não consigo seguir o exemplo do guru de fitness, sou levado(a) a questionar a minha própria saúde. Além disso, provavelmente vou sentir-me incompetente por não ter feito o mesmo. A auto-estima diminuiu e o sentimento de inferioridade surge diante de uma imagem que nem sempre representa a realidade.

Sim, eu sou responsável pelas minhas escolhas. Eu escolho ir para ao ginásio e eu escolho o que comer. Mas a forma como o meu corpo responde aos factores externos depende da genética, da libertação de hormonas, do biótipo, dos tipos de estrutura óssea, entre outros. E estes factores não tenho como escolher e nem controlar.

Todas estas questões levam a um destino certo: aceitação corporal ou a urgência de começamos a reflectir de que formas a nossa percepção distorcida de nós mesmas (e consequente falta de auto-estima e amor-próprio) está condicionada pela sociedade, ou pelos media, que directa ou indirectamente impõem “ideais” irrealistas de perfeição, com uma infeliz e inevitável consequência para si mesma: o sofrimento emocional. E eis a questão que não quer calar: como é possível amar-se a si mesma, ter uma boa auto-estima quando se está sempre a criticar, a cobrar e a julgar pelo seu aspecto?!

Que guerras são essas que se travam em nome da eliminação da celulite, das estrias, rugas e gordurinhas, batalhas contra o próprio tempo, que naturalmente passa por nós e por toda a natureza, fazendo-nos exterminar certas características corporais, transformando o nosso corpo num campo de batalha contra características próprias que são nossas e só nossas, nasceram connosco como marcas de água de um legado geracional, vivo, autêntico e único, tal como a nossa impressão digital? Que porções de vida original que carregamos são erradicadas de nós mesmas para nos tentarmos tornar apenas mais uma cópia de uma imagem retocada em Photoshop?

O seu corpo, quer o ame ou o odeie, é o que tem fundado a sua existência, pois se aí está a ele o deve. O seu corpo, quer o ame ou o odeie, é tão-somente um templo vivo que habita, templo esse a sua casa no mundo e o constante retorno a si mesma.

O corpo, entendido como o lugar que nos dá uma forma física, permite-nos actuar sobre o mundo externo e é uma parte mais que importante de nós mesmas. Juntamente com as emoções e pensamentos, formam um “todo”, o que nos diferencia do resto. Porque é que os padrões de beleza actuais e a percepção errónea do que é a saúde a levam por vezes a odiar o seu “todo”, passando a amar uma fantasia utópica em que o envolve?

Que “inconsciente colectivo” é esse tão internalizado dentro de nós que nos faz julgar umas às outras pela marca corporal, pela celulite, pelas unhas por arranjar ou pelas sobrancelhas por fazer e que nos faz logo sentenciar “que acabada, que desleixada” apenas pela simples aparência de alguém?

Perceba que isso é um reflexo da sociedade e que recai sobre si. Não seria mais agradável poder gostar de si mesma tal como é, vendo as suas “imperfeições” como perfeitas marcas do tempo e do que viveu? O seu corpo é parte de si e conta a sua história. Acolha-o. Acolha-se. Respeite-o. Respeite-se.

A cultura da opressão, perdão, da magreza e do “makeover” actualiza-se permanentemente e o conceito de que a felicidade e a beleza estão unidas continua firme e forte por aí.

A ditadura das dietas e dos ideais de beleza não é apenas uma questão estética; é uma forma de controlo social, especialmente sobre as mulheres. Desde tenra idade, somos ensinadas a moldar os nossos corpos para se encaixarem num padrão irreal e inatingível, ditado principalmente pelo patriarcado. Mas porque deveríamos nós sujeitar-nos a essas normas opressivas que só servem para nos reter submissas e insatisfeitas, mantendo-nos bem (pré)ocupadas com as nossas próprias inseguranças para nos levantarmos contra as formas de disparidade que enfrentamos diariamente?

Ao dividir-nos nas categorias de “boas” e “más”, “bonitas” e “feias”, “elegantes” e “desleixadas” com base meramente na nossa aparência e comportamento, a nossa sociedade patriarcal busca manter-nos controladas e fragmentadas. Mas é hora de derrubar essas barreiras e rejeitar esses rótulos impostos (perpetuando assim a dominação machista através da estratégia de “dividir para reinar”). É hora de nos unirmos numa luta contra a ditadura da beleza, em busca de uma verdadeira liberdade e aceitação de nós mesmas e umas das outras.

Saiba que o controlo social sobre os corpos femininos desempenha várias funções, de entre elas

  • Mantém-nos na busca constante de “perfeição” e “aprovação”, condicionando-nos a ser escolhidas;
  • Aprisiona-nos numa busca incessante pela “beleza”, desviando a nossa energia de questões sociais importantes e impedindo-nos de combater a nossa própria opressão;
  • Subordina-nos às normas da narrativa patriarcal sobre o que é considerado “bonito”, “atraente”, “desejável”, “valoroso” e “aceitável”, negando-nos a oportunidade de construir a nossa própria identidade e aspirações;
  • Reforça a ideia de que os homens detêm o poder de escolha, enquanto às mulheres resta apenas a submissão, como sugere o conceito da “prateleira” da Dr.ª Valeska Zanello no seu sensacional e indispensável livro “Saúde Mental, Género e Dispositivos”;
  • Reduz-nos à condição de objectos para consumo masculino, desvalorizando-nos como sujeitos individuais e enfatizando a importância da aparência.

Quando uma mulher se sente feia e infeliz, tende a retrair-se. Muitas não se destacam e nem mesmo reivindicam os seus direitos. Em vez disso, preferem permanecer em casa ou sentem-se envergonhadas de ocupar espaços públicos. Mesmo quando estão nesses espaços, podem recuar na luta por mais direitos, sentindo-se inadequadas ou insuficientes.

Nessa constante insatisfação, falhamos em canalizar a nossa energia para lutar pela igualdade de género. Continuamos a ganhar menos, a sentir vergonha e medo, de um modo geral, a suportar diversos tipos de violência e a buscar incessantemente a aprovação masculina em relação ao nosso comportamento e aparência física, na esperança de encontrar um pouco de “felicidade”, ainda que fugaz.

Mas afinal, a quem pertence o corpo da mulher? Parece que a resposta seria óbvia, mas não. Não sei… mas sei que ele não existe para ser uma peça decorativa do mundo. Ele existe para ser muito, muito mais!

O nosso corpo carrega as nossas histórias e possibilita a realização dos nossos sonhos. É preciso sentir-se confortável na própria pele que habita, mas para isso é necessária uma dose considerável de auto-aceitação e de respeito por si mesma.

Deveríamos estar a conversar sobre o valor da mulher para além da estética, e não associar o seu sucesso à aparência. É nossa responsabilidade rejeitar essa narrativa e buscar viver de acordo com as nossas próprias regras e valores.

Querida leitora, você tem o poder de mudar o seu corpo, mas isso – na maioria dos casos – não significa que você irá amá-lo. Ou sequer que você irá amar-se. O significado de beleza no que se refere à imagem, é bastante relativo e vai-se modificando ao longo do tempo. Mais além do que impõe a moda, o certo é que o corpo é a melhor máquina tecnológica com a qual contamos.

A expectativa dos outros é um lugar muito desconfortável para você morar.

Quando não somos dependentes da opinião dos outros para nos sentirmos bem, ou seja, quando nos tornamos emocionalmente independentes, libertamo-nos da necessidade que atender em demasia às expectativas que vêm de fora, que vêm dos outros. Na verdade, colocar nas mãos dos outros esse poder, para além de nos fragilizar como seres humanos, apenas fará com que a sua busca pela aprovação externa seja um “saco sem fundo”, porque por mais que você se esforce, nunca se sentirá suprida.

Você só se nutre realmente daquilo que se dá a si mesma; o mundo lá fora nunca o poderá fazer por si. Só nos sentimos verdadeiramente preenchidos com aquilo que vem de dentro de nós. Isto trata-se apenas de maturidade emocional, que significa que você entendeu que o amor-próprio é tudo na vida, que a auto-aceitação traz com ela o sentimento de completude, de plenitude, de paz interior, permitindo-lhe ver as coisas com mais clareza, seguindo em frente com sabedoria e passando a lidar com a vida e consigo mesma de uma forma mais construtiva e positiva.

Não incluir “emagrecer” na lista de objectivos para 2024 é apenas o ponto de partida de uma delicada mas afiada revolução. Para este ano, que a principal meta seja o auto-conhecimento. Mesmo o discurso do “amor-próprio” ou do “auto-cuidado” meramente associados ao consumo de produtos estéticos às vezes acaba por tornar-se uma pressão. Substitua-o por auto-respeito e auto-conhecimento que, aí sim, espantar-se-á com as diferenças entre o “antes” e o “depois” (conselho de amiga).

Você não é “descuidada” se tem flacidez, estrias, celulite ou gordura localizada. Que tal começarmos a direccionar o ódio aos sistemas que nos adoecem e não a nós próprias?

Cuidar do corpo tem muito pouco a ver com a forma do corpo (vejam-se os absurdos insalubres que as pessoas fazem para terem o formato de corpo da moda). Cuidar do corpo é cuidar da mente, da vida, dos relacionamentos que mantemos com as pessoas ao nosso redor.

Amar-se tal e qual como é, independentemente do que a sociedade ou os media ou a publicidade ou a moda lhe impuseram é libertador e traz mais luz à sua vida. O amor passa a fluir dentro de si e é a partir desse ponto que você se torna capaz de fazer o amor fluir de si para o outro com muito mais facilidade.

Então, da próxima vez que você se encontrar obcecada com a ideia de alcançar o corpo perfeito, pare e pergunte-se o seguinte: quem é que realmente se beneficia com isto? Acredite, não sou eu e nem é você. É hora de rejeitarmos os padrões impostos e de abraçar a beleza em todas as suas formas e manifestações.

Porque todas as pessoas são bonitas, não importa o que as modas fátuas tentem fazer-nos crer. E é hora de nos lembrarmos disso, alto e claro, até que o mundo inteiro escute.


Sara Ferreira

Email: apsicologasara@gmail.com

Site: www.apsicologasara.com

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