É consigo com quem eu quero falar hoje, nestes dias aflitos, bela adormecida. Nem precisa levantar-se da cama para ler. Mas leia, que o recado será passado (porque precisa).
Bela, recatada e adormecida de si própria, ou será antes “queque” amargo, “mil folhas” em branco ou, se me permite, uma “pastelinha de nata”?
Você, que sempre tentou ser a menina boazinha. Sim, você mesma. A metáfora de ser um “pastel de nata” ilustra perfeitamente a dualidade que muitas de nós enfrentamos. Por fora, somos doces e aparentemente serenas, apresentando uma fachada tranquila e agradável ao mundo. No entanto, por dentro, carregamos um recheio quente e intenso, uma força de sentimentos e emoções que muitas vezes é reprimida, puro perigo radiactivo passivo-agressivo. Essa delicodoçura exterior não revela a complexidade e a intensidade das nossas experiências internas.
Chamá-la hoje de “pastel de nata” é reconhecer essa dualidade: a capacidade de manter uma fachada calma e hipercontrolada, enquanto que internamente existe uma labareda de paixão, raiva e autenticidade que há muito está à espera de ser expressa.
Aquela que cresceu a acreditar que deveria gerar o mínimo de solicitações possível, sempre a tentar agradar e não decepcionar os pais e o mundo ao redor. Você, que fez da tentativa de perfeição a sua armadura contra as críticas.
Mas e toda aquela agressividade reprimida? Para onde foi?…
Freud, com a sua barbicha hipster e as suas teorias, já dizia: toda a pulsão precisa de um destino. A raiva não desaparece magicamente, não é assim que funciona. Se não a direccionamos para o mundo externo, ela volta-se contra nós mesmas, sabia? E o que é que isto significa?
Bem-vinda ao mundo das crises de ansiedade, do pânico, da depressão, das doenças físicas “inexplicáveis” e aquela auto-depreciação medonha que insiste em sabotar as suas conquistas.
Vamos aos dados, porque a ciência não mente (e nós, mulheres, já estamos cansadas de ilusões e auto-enganos). Os estudos indicam que as mulheres são duas vezes mais propensas a sofrer de transtornos de ansiedade do que os homens. E adivinhe? Isso não é coincidência. A socialização feminina ensina-nos a “engolir” a raiva, como se expressar esta emoção fosse um pecado capital. Somos programadas para acreditar que a raiva não é um sentimento feminino, mas a biologia e a psicologia parecem discordar.
Os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que 80% das pessoas que sofrem de doenças auto-imunes são mulheres. Sim, a raiva reprimida pode literalmente virar o seu corpo contra si. Isto sem falar nas crises de pânico que afectam cerca de 5% da população mundial, com uma prevalência significativamente maior entre as mulheres. Porque, afinal, engolir sapos tem as suas consequências.
Leu bem. Os sintomas físicos são expressão de dinâmicas emocionais, conforme estuda a Psicossomática desde há muito. Mais recentemente, os estudos de ilustres investigadores nesta área, como o aclamado Dr. Gabor Maté, colocam estas conclusões em evidência, nomeadamente no seu bestseller “The Myth of Normal: Trauma, Illness and Healing in a Toxic Culture”.
Ignorar ou suprimir como nos sentimos e o que precisamos acelera a nossa resposta ao stress, levando o nosso corpo aos processos de inflamação, a base de qualquer tipo de doença.
Existe indubitavelmente uma ligação de toda a sintomatologia física e psíquica de uma pessoa com os seus padrões emocionais e comportamentais. Os sintomas falam. As dores no nosso corpo e na nossa mente são gritos da alma. Aquilo que vivemos no mais profundo de nós mesma(o)s exterioriza-se através do nosso corpo e mente.
E o mais importante: uma dor física e/ou psicológica crónica indica que você está a carregar uma dor emocional de forma constante (lembre-se: o seu sistema funciona como um só) – e isso afecta também várias áreas da sua vida, além da sua saúde. O problema maior é que quanto mais você se nega a olhar a questão emocional, escondendo-a, anestesiando-a ou rejeitando-a (ou fazendo de conta que “está tudo bem” ou “é melhor não pensar muito sobre isso”), mais pressão o seu corpo/mente vão ter de fazer para que o sinal seja notado – e o que começa com um sinal de alerta torna-se, com o tempo, uma dor severa ou “doença” (que pode variar de uma enxaqueca a um cancro, de uma gastrite a uma doença de Crohn, por exemplo, dependendo do contexto emocional envolvido).
Sim, a dor emocional é dor de verdade! E afecta também o corpo, como diz a ciência, a medicina psicossomática. A dor emocional activa no cérebro as mesmas regiões afectadas pelos processos de dor física, e para cada tipo ou natureza do conflito ou da dor emocional são activados no cérebro e nas glândulas endócrinas que controlam certas partes do corpo as mesmas respostas de stress, tanto ou mais que a dor física. Noutras palavras, a dor emocional (dentro de nós) dói tanto ou mais que a dor física.
O sintoma é uma espécie de “artefacto” forjado pela pessoa para dar um destino àquilo que ele(a) não consegue dizer de outra forma… Portanto, nós terapeutas, temos que respeitar o sintoma e levar a pessoa àquele momento em que ele(a) não precisa mais disso, em que ele(a) pode dizer, ele(a) pode estar com o outro, ele(a) pode reconhecer o seu desejo de outra maneira e, portanto, não precisa mais daquele sintoma.
Somos criadas desde meninas para ter o nosso valor atrelado à percepção das outras pessoas sobre nós. O auto-valor da menina nunca é incentivado, reconhecido para além dela agradar ou facilitar a vida dos outros. E ainda nos perguntamos o motivo de tanta ansiedade e culpa…
A ansiedade e a culpa são pessoais, cada um(a) sente subjectivamente de uma maneira e tem os seus motivos e as suas histórias, mas de maneira geral, a socialização feminina é para a ansiedade, o medo e a culpa, já que atrela o nosso valor ao quanto agradamos e facilitamos para os outros.
E quanto aos impactos destas questões no ambiente de trabalho? A famigerada “síndrome da impostora” atinge principalmente as mulheres, que frequentemente sentem que não merecem o seu sucesso. As mesmas mulheres que aprenderam desde cedo a não fazer barulho, a não reivindicar, a silenciar as suas percepções, a não expressar a sua raiva. Porque, se o fizessem, seriam rotuladas de “agressivas”, “histéricas” ou “difíceis”. Então, o que fazem? Sabotam-se. Oh, meninas boazinhas, queridas “pastelinhas de nata”, que crescem a acreditar que a única maneira de serem aceitas é através da auto-anulação, transformando-se em sombras de si mesmas
Mas há uma luz ao fundo do túnel (e não, não é o comboio). Estamos a começar a questionar, a revoltar-nos contra essas expectativas sufocantes. O movimento do despertar feminino, à escala global, por exemplo, tem dado voz a essa raiva reprimida. Mulheres em todo o mundo estão a unir-se mais, a redireccionar a sua raiva saudável para os factores que as têm feito adoecer desde há séculos, ao invés de utilizarem essa carga pulsional contra si próprias ou umas contra as outras, dizendo que já basta! Que não vão mais engolir sapos. Que têm o direito de estar com raiva, de expressar a sua agressividade de maneira saudável e potenciadora de mudanças benéficas (tanto individual como colectivamente).
Sim, quem não se exprime… oprime ou deprime!
E no dia de hoje, aqui vai a minha pergunta: como é que você anda a expressar as suas emoções?
Antes disso… como anda a sentir as suas emoções?
Consegue reconhecê-las em que parte do seu corpo físico elas surgem? Alegria, tristeza, vergonha, raiva, nojo… Como se manifestam? Deixa que elas a subjuguem ou consegue observá-las de fora, de forma curiosa?
As emoções são o GPS da alma. Mas será que o sabemos? Somos ensinadas a reprimir as emoções “más” desde crianças, para agradar a quem nos rodeia. Aos nossos pais, aos professores, aos amigos e colegas, aos nossos companheiros… Tantas vezes, entramos numa busca incessante de emoções “boas”, para evitar as outras… aquelas que tanto nos podem ensinar sobre nós próprios.
Para onde vai sua raiva quando você a silencia?
A raiva é uma emoção básica como qualquer outra. Assim como sentimos alegria, tristeza, nojo, medo, amor. Ela faz parte de nossa natureza e, usada adequadamente, é saudável para a nossa sobrevivência, protecção e integridade. Ela impulsiona-nos para frente, para agarrar o que é nosso por direito, a defender os nossos espaços, a proteger nosso ambiente e ir atrás dos objectivos.
A raiva exige movimento, acção. Quando sentimos raiva, o primeiro passo é identificar e assumir para si mesma que estamos com raiva.
Não, não somos de ferro e mesmo o ferro deixa-se moldar, derreter, transformar.
Na vida e nos relacionamentos, fingir ou mascarar as emoções pode evitar conflitos aparente e temporariamente, mas a inautenticidade tem um custo bastante elevado. É melhor ser mais atenciosa e honesta consigo, o que poderá resultar em interacções mais satisfatórias, íntegras e mais genuínas.
Os grandes desastres começam em pequenos desvios, pequenas concessões diabólicas que desviam a nossa alma para longe de nós mesmas.
Se você foi emocionalmente destratada enquanto criança (por exemplo, ter sido ignorada, negligenciada, abusada, abandonada – essencialmente não apoiada ou validada nas suas emoções) permanece sempre uma ferida que tende a ser activada quando experiencia dor emocional. Você poderá sentir-se em ansiedade, auto-dúvida constante, vergonha, auto-crítica severa, auto-hostilidade ou mesmo auto-aversão.
Talvez os seus pais não a tenham ensinado a lidar com as suas emoções, ou talvez os próprios pais tivessem problemas de gestão da raiva, que eles acabavam por direccionar para os seus filhos. Isso pode ter levado as crianças a esconder as suas emoções como um acto de sobrevivência.
Não é normal viver a vida a tentar ser o que você acha que as pessoas querem que você seja. Não é normal engolir as suas emoções para não desagradar ou decepcionar as pessoas. Não existe mérito nenhum em abandonar a sua própria essência apenas para caber num lugar ao qual você quer pertencer.
Então, você, menina boazinha, questione-se. Para onde vai sua raiva? Você consegue dar lugar a ela ou continua a engoli-la, e a sentir a azia tenebrosa e interminável da frustração? Está na hora de parar de agradar a tudo e a todos (tarefa impossível, de resto) e a começar a agradar a si mesma. E, se isso significar gritar, bater o pé ou chutar o balde, que assim seja. Às vezes, isso não é menos do que o necessário.
A metáfora do “pastel de nata” diz-nos que podemos ser moles e doces por fora, mas com um recheio quente e intenso por dentro, qual raiva reprimida versus a necessidade de desenvolver mais autenticidade. Porque, no final das contas, ser uma “pastelinha de nata” não nos leva a lugar algum. O meu convite é para que você aceite e dê voz a esse miolo de dentro, permitindo-se ser inteira e verdadeira, em vez de apenas a casca doce que o mundo espera ver.
A raiva reprimida tem sido apontada como a causa de diversos tipos de doenças e de distúrbios imunológicos. Ser autêntica, inteira e, sim, assertiva quando necessário, pode ser a chave para a nossa libertação.
Sara Ferreira
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