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Como ser autêntica num mundo que lucra com a nossa insegurança

Enquanto homens medíocres se acham semi-deuses, as mulheres lidam com a síndrome da impostora e a dúvida constante. Autenticidade feminina não é vaidade: é resistência, revolução e reconexão com quem realmente somos.

Vivemos numa cultura que nos ensina cedo que nunca estamos prontas. A mulher é treinada a olhar-se ao espelho não para se reconhecer, mas para se vigiar. É como se houvesse sempre algo em falta: menos peso, mais disciplina, outra cor de cabelo, um corpo diferente, uma versão “corrigida” de si mesma. Esta pedagogia da insuficiência não é acidental — é rentável. A indústria da moda, da cosmética, do fitness, até da espiritualidade do Instagram, cresce na medida em que nós diminuímos. A lógica é simples: mulheres inseguras consomem mais.

Quantas vezes se olhou ao espelho a tentar descobrir o que faltava — a ruga que não devia, o volume que sobrava, o silêncio que soava como fracasso? Crescemos treinadas para acreditar que somos versões inacabadas de nós mesmas. Que precisamos de um batom, uma dieta, um curso de “energia feminina” ou uma meditação guiada para, finalmente, sermos inteiras. A indústria da beleza e do bem-estar é, no fundo, uma indústria do mal-estar: ela vive da chaga sempre aberta, da promessa de que “amanhã” seremos melhores do que hoje — desde que compremos a versão ‘premium’ de nós mesmas.

Enquanto isso, nalgum bar qualquer perto de si, um homem pífio ergue o copo de cerveja como se fosse o cálice sagrado do Olimpo e sente-se um autêntico semi-deus. Simone de Beauvoir não exagerou: “O machismo faz com que o mais medíocre dos homens se sinta um semi-deus diante de uma mulher.” É quase uma dádiva cultural — ele não precisa ser brilhante, basta ser homem. Se tem uma opinião, já é tese. Se tem um hobby, já é talento. Se tem um emprego, já é herói. Se é pai e muda uma fralda, ui, já tem poderes sobrenaturais. E se não tem nada disso, ainda assim é-lhe devido todo o respeito!

Nós, mulheres, bem pelo contrário: precisamos justificar a cada passo a nossa existência. Na psicologia chamamos isso de dissonância identitária: quando a imagem que temos de nós é corroída por expectativas externas. Fomos socializadas para sentir culpa — pelo corpo, pela voz, pelo desejo, pela maternidade, pela ausência de maternidade, por falar demais, por calar demais. A culpa é o cimento invisível que sustenta o edifício patriarcal.

Mas ora aqui está a ironia cruel: enquanto sentimo-nos sempre a menos, eles sentem-se sempre a mais. O velho contraste, tão bem explanado pela psicanálise, sobre “eles sobram, nós faltamos”. É o que alguns estudos de psicologia social chamam de “overconfidence effect” — a tendência masculina de superestimar as próprias capacidades, mesmo sem lastro de competência. Enquanto isso, nós tropeçamos na chamada síndrome da impostora: mulheres brilhantes, hiperqualificadas, que questionam a toda a hora se merecem sentar-se à mesa, como se o convite tivesse sido um erro administrativo.

Num escritório típico isso é muito comum: a mulher com mestrado, pós-graduação, horas incontáveis de estudo, ainda hesita antes de dar a sua opinião; já o colega que mal leu o briefing fala com a convicção de quem anuncia as tábuas de Moisés. Nas relações, repete-se: as mulheres fazem malabarismos emocionais e logísticos para manter a casa em pé, mas duvidam do seu valor; já os homens esquecem garbosamente todos os aniversários e ainda exigem aplausos. É a auto-estima inflacionada como moeda cultural.

Mas a coisa não se fica por aí. Marilyn Frye captou com precisão até onde vai o taco a taco do mano a mano, revelando como os homens reservam para si uma devoção que nunca oferecem às mulheres. Refere que “A cultura heterossexual masculina é homoafectiva, ela cultiva o amor pelos homens.” A admiração, a veneração, a verdadeira lealdade são quase sempre reservadas a outros homens. Eles erguem-se em pedestais mútuos — no desporto, na política, na academia, até nos podcasts de masculinidade tóxica que infestam a tão “recente” manosfera. E as mulheres? Para elas resta a função de servas emocionais, sexuais, devotas. A nós, oferecem patetice e paternalismo; a eles, o altar da reverência.

Há aqui uma pedagogia invisível. Às mulheres, desde pequenas, ensinam-se as micromensagens: “não fales alto”, “não te exibas”, “não sejas convencida”. Crescemos a pedir desculpa por existir. Já os meninos aprendem cedo a expandir-se: “mostra o que sabes”, “impõe-te”, “manda / controla / domina / agride”. Quando adultos, nós internalizamos a dúvida de sermos “sujeitos”; eles, a certeza de serem a medida de todas as coisas. O mundo pertence-lhes de antemão. Nós estudamos até a exaustão; eles improvisam com humor leve e boa-disposição. Nós preparamo-nos para merecer; eles já nascem donos e a vencer.

É por isso que tantas de nós, mesmo rodeadas de diplomas, permanecemos com o fantasma da insuficiência. E é por isso que tantos deles, mesmo rodeados de desaires, continuam a “ter-se” e a “achar-se” que são puros “génios” incompreendidos.

Quem de nós já não se deparou com aquele “artista” que não sabe cozinhar um ovo, mas dá palestras sobre gastronomia molecular? O colega que confunde ata com data mas assume a ordem de trabalhos da reunião? O namorado que lê meio artigo no Google e explica neurociência à parceira psi? Desfilam sem pudor, como quem nunca soube o peso da vergonha. Um teatro burlesco que parece comédia, mas dói como tragédia.

Psicologicamente, o saldo é devastador. A insegurança feminina não é natural — é cultivada, adubada, regada diariamente pela cultura e pelo mercado. E a auto-estima masculina não é mérito — é inflação, bolha especulativa do ego, sustentada pelo silêncio cúmplice de uma sociedade que prefere homens arrogantes a mulheres autênticas.

Mas vale notar: duvidar de si também pode ser potência. O que é chamado de “síndrome da impostora” pode, paradoxalmente, ser uma marca de lucidez: ter consciência da complexidade, reconhecer os próprios limites, abrir espaço para aprender. O problema não está em duvidar — está em transformar essa dúvida em algema, num permanente e frenético chicote.

A pergunta, então, não é “como eliminar a insegurança?”, mas “como convertê-la em consciência?”. Autenticidade é desobedecer. É rir da mediocridade divina dos semi-deuses de bar. É existir sem pedir licença. É reconhecer que beleza não é tendência — é presença. Não se mede em filtros, em centímetros, em avaliações masculinas. Mede-se em verdade.

Não, você nunca foi o defeito. O defeito é a forma apertada onde tentam enfiar-nos. A vida não foi feita para caber — foi feita para expandir. E é nessa mutilação diária do que somos que nasce tanta doença: do estômago que se fecha à mente que não dorme, da alma que desaprende a respirar. Adoece-se quando se vive uma vida emprestada, quando se engole a própria verdade e se arquiva a própria coragem. Não tem diagnóstico oficial, mas sente-se no corpo, na ansiedade que corrói, na depressão que mói, na impressão de que falta sempre alguma coisa — mesmo quando já demos tudo.

E se este vazio que atravessa tanta gente não for um problema individual, mas o sintoma de uma engrenagem maior? Burnout, depressão, consumo compulsivo, até o colapso climático — talvez sejam todos reflexos de um mesmo afastamento: o corte entre quem somos e o que nos deixam ser. Uma sociedade que se alimenta da nossa amputação interior não pode produzir outra coisa senão devastação.

Por isso, ser autêntica não é auto-ajuda fofinha. Não é, portanto, “aceitar-se” ao bom e velho estilo motivacional da internet. É vandalismo existencial. É o contrário do que esperam de nós. É dizer basta ao encolhimento, ao pedido de desculpa por existir, à ideia de que só seremos “aceitáveis” se encaixarmos num molde feito por outros. Autenticidade é recusar a domesticação. É reivindicar a diferença como potência.

E quando uma mulher se ergue inteira, ela não é só ela: é um desvio no sistema. O dito cujo engasga. Porque uma mulher autêntica não compra tanto, não pede desculpa tanto, não se culpa tanto. É menos rentável. E é precisamente por isso que é revolucionária. Cada uma que ousa ser plenamente quem é abre uma fenda por onde entra ar fresco para todas. A autenticidade contagia. O amor-próprio multiplica-se. E a verdade, quando enfim se vive, deixa de ser só pessoal: torna-se colectiva. Cura-nos a nós, aos nossos vínculos, ao mundo que partilhamos.

Se o mundo nos quer inseguras e culpadas, a psicoterapia pode ser o lugar onde reaprendemos a ser sujeitos — não objectos. É onde desmontamos a herança cultural da culpa e reconstruímos uma narrativa própria. Trabalhar a auto-estima em psicoterapia não é vaidade: é resistência. Num mundo que lucra com a nossa baixa auto-imagem, aprender a gostar de si é quase um acto de sabotagem económica.

A psicoterapia ajuda-nos a reconhecer os padrões que internalizámos: a exigência desmedida, a auto-crítica corrosiva, a eterna sensação de insuficiência. Ajuda-nos a distinguir a voz própria das vozes impostas. É, em termos psicológicos, um processo de individuação; em termos políticos, um acto de desobediência civil. Porque uma mulher que sabe o seu valor é menos controlável, menos manipulável e menos consumidora compulsiva de “soluções mágicas”.

Autenticidade, portanto, não é somente uma questão estética, mas ética e política. Ser autêntica é recusar a lógica da falta, é deixar de viver como projecto inacabado e assumir-se como presença inteira. É rir da tolice divina dos semi-deuses da mesa do bar.

O mundo prefere homens pseudo-confiantes a mulheres autênticas porque aqueles mantêm as estruturas intactas, enquanto mulheres autênticas abalam os alicerces. E é por isso que cada passo em direcção ao amor-próprio é um passo mais do que assertivo. É insubmisso.

No fim, talvez a pergunta não seja “como ser autêntica num mundo que lucra com a nossa insegurança?”, mas sim: “como não ser?”. Porque deixar de existir em função da falta é o gesto mais radical que podemos fazer.

Ser autêntica, neste mundo, é recusar a lógica de que estamos sempre em falta. É lembrar que somos abundância fecunda, transbordo, sobejo. E é também, com certa ironia, olhar para o Olimpo dos semi-deuses medíocres e sussurrar: “vocês já não nos enganam”.

Porque, no fim, o gesto mais radical de uma mulher continua a ser o mesmo: existir sem culpa ou medo, com a coragem de quem sabe que a maior heresia feminina é ocupar espaço sem pedir desculpa. E ter uma vida sem pedir licença.


Sara Ferreira

Email: apsicologasara@gmail.com

Site: www.apsicologasara.com

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