A paixão pela ciência dos materiais leva Elvira Fortunato a querer estar sempre a fazer ‘coisas’. Uma delas, o transístor de papel, a sua grande invenção, valeu-lhe, primeiro a Medalha Blaise Pascal, em novembro último, e mais recentemente, o Prémio Czochralski 2017, ambos atribuídos pela primeira vez a um investigador português.
Este último reconhecimento chegou dia 23 de janeiro de 2017, atribuído pela Academia Polaca de Ciências e pela Sociedade Europeia de Investigação de Materiais, como reconhecimento do trabalho de investigação da cientista e docente na área da Ciência dos Materiais Avançados, como noticia a Lux.
Em novembro do ano passado, em Bruxelas, recebeu a distinção da Academia Europeia das Ciências, também atribuída pelos contributos de Elvira para a ciência e a tecnologia e para a promoção da excelência na investigação e educação na sua área.
Na LuxWOMAN de janeiro, Elvira Fortunato foi a nossa ‘Mulher em quem acreditamos’. Se não teve oportunidade de ler a entrevista com a cientista galardoada, não se fique por estas linhas e siga para as seguintes.
Natural de Almada, onde estudou, ainda vive e trabalha, a investigadora e professora catedrática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, hoje com 52 anos, foi a primeira cientista portuguesa a ser distinguida com o 1º prémio do European Research Council (ERC), bolsa atribuída em 2008, ao projeto intitulado INVISIBLE, que propunha a fabricação de transístores e circuitos integrados transparentes, usando óxidos semicondutores, uma ideia arrojada e inovadora a nível mundial. A bolsa, no valor de 2,25 milhões de euros, foi a mais avultada quantia alguma vez atribuída a um investigador português e foi investida no laboratório que dirige, desde 1998, o Centro de Investigação de Materiais – CENIMAT.
A ficção científica é muito importante para nós, os cientistas (…). Por exemplo, na área do papel há muito trabalho relacionado com o Harry Potter.
Nesta altura, a cientista não podia prever a loucura que se iria passar à sua volta e à volta da sua equipa, não estando à espera de tão grande efeito: “não estava à espera que fosse uma bomba, em termos internacionais. Todos os meios de comunicação social, internacionais, queriam falar comigo, desde a EuroNews à edição online do Financial Times.”
Nessa altura, a professora universitária, foi bombardeada por e-mails, telefonemas, solicitações, convites e a partir daí, nunca mais parou e passou a ser convidada para as melhores conferências da área científica mundial. De repente, torna-se numa estrela internacional da tecnologia.
O seu trabalho em laboratório parece-nos saído da ação de um filme de ficção científica, género de filmes, que sempre a fascinou, “gostava muito de filmes de ficção científica. Sempre gostei. Gosto muito de Júlio Verne. A ficção científica é muito importante para nós, os cientistas. Nos filmes do Harry Potter, por exemplo, os jornais têm mostradores, têm imagens que se mexem. Na altura eram ficção científica, mas nós já conseguimos fazer isso no laboratório.”
Portugal é palco do nascimento desta realidade, graças a Elvira Fortunato e à sua equipa, com o projeto INVISIBLE. A investigadora que ajuda a por em prática esta realidade, antes fantasiosa, explica-nos que “por exemplo, na área do papel há muito trabalho relacionado com o Harry Potter. E na área da eletrónica transparente, na área dos mostradores, no filme de Steven Spielberg, Minority Report (2002), com o Tom Cruise, todos aqueles écrans transparentes, eram ficção científica e hoje são uma realidade, já comercializada. Pode tratar-se de um GPS inserido no vidro do carro, podem ser janelas com imagens, ou com sensores, com aquilo que quiser. A ficção científica é muito importante para os avanços científicos. Júlio Verne imaginou que o homem ía à lua, sem ter qualquer tecnologia no séc XIV. Foi um visionário. Tudo o que imaginou acabou por se tornar realidade mais tarde.”
A grande oficial da Ordem do Infante D. Henrique, distinção atribuída pelo Presidente Cavaco Silva, em 2010, não tem uma resposta concreta para a pergunta que já lhe foi feita mais de 100 vezes: como é que surgiu a ideia dos transístores de papel? Como se lembrou de fazer esta experiência?
A minha área é a área dos materiais e, por vezes, estamos rodeados de materiais com propriedades tão boas e que podem ser usados noutras aplicações. A própria ciência, nos últimos anos, evoluiu e já não é tanto como no passado, em que nós tínhamos as áreas da química e as da física, hoje em dia, as áreas científicas acabam por se cruzar, interligam-se. Por vezes temos materiais que são usados em variadas aplicações, mas se calhar até, podem ser utilizados noutras. Para outra aplicação, aquele material acaba por ser muito bom. Neste caso, acabou por ser na área do papel. Nós já tínhamos uma história de laboratório, temos uma linha de experiências que é utilizar materiais não tóxicos, abundantes, de baixo custo, materiais verdes. Usamos materiais e tecnologias para processar esses materiais, para dar origem a transístores, ou a outros sensores, ou a outros sistemas, que também são tecnologias amigas do ambiente. Trabalhávamos nessas áreas, hoje em dia trabalha-se muito na área da eletrónica flexível. Por exemplo, atualmente, já temos televisões curvas, com os ecrans curvos. No futuro, se calhar, em vez de um écran curvo, poderemos ter um écran de plástico e enrolá-lo num tubo e depois desenrolá-lo. Nós trabalhávamos nessa área de materiais flexíveis. Se olharmos à nossa volta, o papel tem muitas dessas propriedades. E depois é um material leve, que não se parte. E o papel já foi inventado há muitos anos. E hoje em dia, a tecnologia, inclusivamente em Portugal, para produzir papel, é uma tecnologia de ponta e não há muito mais a inovar nessa área. Há é que tentar utilizar esse material para outras aplicações. Até porque há uma tendência de não se utilizarem livros em papel, revistas em papel e temos tudo em formato digital. Portanto as grandes empresas papeleiras, as empresas de celulose, também procuram alternativas para a utilização do papel. Mesmo em Portugal, já há escolas que não utilizam manuais em papel, os alunos usam ipads. Tendo esta envolvência, materiais e tecnologias amigos do ambiente, eletrónica flexível, processos a baixa temperatura, o papel estava aqui ao nosso lado, mesmo à mão de se olhar para ele com outros olhos.
O meu trabalho é fazer coisas e descobrir coisas novas. Coisas que sejam úteis para nós e para a sociedade.
Fazem-se muitas tentativas?
Por acaso tivemos sorte. Quando pensei nisto, sinceramente, achei que não ía funcionar. Quando me lembrei de utilizar o papel… Porque nós já utilizávamos o papel para escrever, nós usamos o papel como suporte da tinta ou da grafite do lápis. Aquilo que depois foi feito foi usar o papel como um material de eletrónica, ou seja, um dos próprios componentes do transístor e… quando pensei nisso, pedi a um aluno meu para experimentar, eu própria estava convencida que não iria funcionar e a verdade é que funcionou à primeira.
Quando isso acontece o que sente a inventora?
É como ganhar o euro-milhões. Não se ganha dinheiro, mas em termos de investigação científica, sobe-se uma enorme escala. Contribui-se para o reconhecimento internacional. Neste caso concreto, foi uma situação um pouco disruptiva, não foi nada incremental.
Como explica o que faz a um leigo nesta matéria? Como explica, por exemplo, a uma criança, o que é o seu trabalho?
O meu trabalho é fazer coisas e descobrir coisas novas. Coisas que sejam úteis para nós e para a sociedade. No fundo, aliás, eu sou engenheira, é tentar mostrar que sem investigação o mundo não avança, sem investigação não há telemóveis, não há televisões. Não se fazem essas coisas todas!
Como surgiu a sua paixão pelo estudo dos materiais? Quando percebeu que a sua vida iria ser pautada pela investigação científica?
Quando andava no liceu, queria seguir engenharia, era um ponto assente. A parte da investigação surgiu quando eu já estava na universidade. Queria fazer coisas e entrei, em 82, na Universidade Nova, para Engenharia Física e dos Materiais. Entre o ramo da física e dos materiais, eu optei pelo ramo de materiais. E depois fui convidada, já na universidade, para ser monitora e para integrar um grupo de investigação e o bichinho surgiu daí, quando comecei a contactar e a perceber o que era fazer investigação científica. E o bichinho manteve-se.
O nosso sucesso depende da forma como nos empenhamos, da forma como nos apaixonamos por aquilo que fazemos.
Em criança, gostava de trabalhos manuais? Era ‘engenhocas’? Lembra-se de algum pormenor da sua infância ou adolescência que lhe tenha indicado que era este o percurso profissional que queria seguir?
Era muito curiosa. Era engenhocas e muito curiosa. Gostava de descobrir coisas, mais aplicadas, experiências práticas, mais na área das ciências, sem dúvida, não tanto na área da história, nem de humanidades.
Fazia experiências?
Fazia. Mas mais, até, em termos culinários.
Então gosta de cozinhar?
Gosto muito. Dá-me muito prazer, cozinhar. E inventar na cozinha. Não consigo seguir uma receita.
Se não tivesse seguido este caminho profissional, seria chef?
Se calhar seria. Já pensei nisso. Por vezes penso que se não tivesse esta profissão, provavelmente teria um restaurante. Gosto muito de cozinhar.
Quando era jovem, se lhe dissessem que iria chegar tão longe, o que responderia?
Responderia que não. Eu não gosto de fazer planos. Não gosto de fazer planos, nem a longo nem a médio prazo. Vou vivendo e o meu percurso tem acontecido de uma forma natural. Eu nunca pensei que ia chegar onde cheguei, nunca andei a lutar, ou a fazer fosse o que fosse para chegar onde cheguei. Era estudiosa mas, sobretudo, gosto muito daquilo que faço, tenho paixão por aquilo que faço e acho que todo este reconhecimento, ou no fundo, este sucesso, meu e da minha equipa, tem a ver com o amor por aquilo que se faz, o que é transversal a qualquer profissão. O nosso sucesso depende da forma como nos empenhamos, da forma como nos apaixonamos por aquilo que fazemos.
Como é receber tantos prémios nacionais, internacionais, ser uma sumidade na sua área? Ser uma das pessoas mais conceituadas do país e no mundo?
Sinto, acima de tudo, uma grande responsabilidade. Com estes prémios todos, com este reconhecimento, a responsabilidade aumenta, tenho de fazer jus a todo este reconhecimento que me foi dado. E é muito gratificante, não só para mim, como para o país. Mesmo em áreas que achamos, que Portugal não se destaca, nós conseguimos destacar-nos, conseguimos chegar longe. Eu acho que Portugal está a passar por uma onda muito positiva. Tivemos o futebol. Tivemos o Web Summit que foi um sucesso. Tivemos o caso da eleição do António Guterres. Portanto, acho que Portugal está a viver uma onda muito positiva. Ouvi uma notícia que nos diz que o Mosteiro dos Jerónimos registou um milhão de visitantes, este ano, um valor nunca antes atingido. Portugal está numa onda positiva e temos de tirar partido do positivo e não do negativo, que não nos leva a lado nenhum.
No meu caso, em particular, nunca senti descriminação, pelo facto de ser mulher.
Como é a Elvira Fortunato enquanto mulher?
Sou casada, tenho uma filha. Sou descontraída e muito otimista. Gosto de moda. Uso saltos altos, gosto de me maquilhar. Gosto de seguir as tendências, aliás, gosto de ficar bem nas fotografias. (risos)
E outros interesses? Quais são os seus hobbies?
Gosto muito de passear e hoje, tenho essa vantagem, pois devido à minha profissão, viajo imenso. Gosto de conhecer outras pessoas, outras culturas. É muito enriquecedor. Dá-nos outras ideias, até para o meu trabalho. Gosto de ir ao cinema. Gosto de ler, mas tenho muito pouco tempo para estas coisas. Leio livros científicos, muito! Ciência leio muito, mas não tenho tempo para outras leituras.
Como é que se desliga da área científica?
É difícil. Como eu e o meu marido trabalhamos na mesma área, isto acaba por não ser um emprego, é um trabalho que nós temos. E é impossível chegar a casa e não comentar um assunto ou não lembrar outro. O nosso trabalho é uma continuação de casa e vice-versa. Não há aquela separação, como antigamente, trabalho/casa. O trabalho e a família, ambos fazem parte da minha vida e estão muito interligados.
Consegue conciliar a sua carreira com a família?
Consegui sempre. Trabalharmos na mesma área foi uma vantagem, tem sido mais fácil conciliar os horários, os fins de semana, projetos.
A sua filha tem 19 anos. Como se vê, enquanto mãe?
Sou um bocadinho exigente. Tento transmitir-lhe o que de melhor aprendi na vida. Partilha dos mesmos interesses, está na área das ciências e é disciplinada como a mãe.
Enquanto mulher, sentiu algum tipo de descriminação, ao longo da sua carreira?
Na minha área não. No meu caso, em particular, nunca senti descriminação, pelo facto de ser mulher.
Qual foi o maior obstáculo que encontrou?
Eu acho que os obstáculos foram sempre superados e nem me lembro de nenhum em particular. Temos sempre alguns obstáculos, ao não ter um projeto financiado como estávamos à espera de ter… existem… mas são coisas normais. Eu costumo dizer que sou uma pessoa de soluções, não sou uma pessoa de problemas.