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Luxo hoje é ostentar saúde mental

Neste mundo doido, ostentação mesmo é ter saúde mental. Especialmente sendo mulher, num tempo em que dizer “não” ainda pode custar-nos a vida.

Hoje em dia, o verdadeiro luxo não cabe numa bolsa de grife nem desfila nos ‘feed’ de Instagram. O que é luxo mesmo, luxo raiz, coisa fina e rara, é ostentar saúde mental. A nova alta-costura da alma.

Num mundo em que o algoritmo sabe mais de nós do que nosso terapeuta, manter-se lúcida é quase um acto subversivo. Especialmente se você for mulher. E mais ainda se você ousar dizer “não” – esse pequeno grande verbo que desencadeia tsunamis emocionais em certos e frágeis egos masculinos de vidro.

Quantas mulheres você conhece que vivem com medo? Que olham por cima do ombro? Que mudam o trajecto, ao andar (inseguras) no meio da rua? Que já ouviram ameaças ditas com voz baixa e um sorriso cínico? Que têm medo de terminar um relacionamento não porque amam, mas porque sabem que o preço do fim pode ser a própria vida?

Estamos num tempo em que o feminicídio tornou-se numa rotina de noticiário. E o mais assustador: banalizou-se. E o problema não é uma sensação vaga. É real, é quantificável, e tem nome: violência doméstica.

Em Portugal, só em 2023, foram mortas 30 mulheres em contexto de violência doméstica, segundo dados da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta). E não estamos a falar de histórias isoladas, casos “apaixonados” ou “tragédias sentimentais” — estamos a falar de um padrão estrutural de ódio às mulheres, camuflado de ciúme, romantizado por décadas, legitimado por silêncios cúmplices.

Essas mulheres foram mortas por terem dito “basta”. Por quererem sair. Por ousarem ser livres.

A liberdade feminina ainda custa vidas. E depois vem o insulto final: chamam-nos loucas. Loucas? Louco é o mundo que aplaude homens que não sabem lidar com um não. Louco é confundir posse com amor, controle com cuidado, obsessão com paixão.

É sempre mais fácil chamar “desequilibrada” à mulher que chora, que denuncia, que reage, do que confrontar a masculinidade frágil e violenta que não sabe lidar com frustração.

A verdade é que o desequilíbrio não está nas mulheres – está no mundo.

Estamos cercadas por uma cultura que patologiza o que é, no fundo, um instinto de sobrevivência. Quando gritamos, quando nos rebelamos, quando nos deprimimos, é porque o corpo e a mente já não aguentam mais ser território de guerra.

E isto num contexto onde todos estamos, basicamente, esgotados.

Vivemos num tempo onde a exaustão é a nova norma. Acordamos com alarmes, dormimos com notificações. A produtividade é o novo deus. A ansiedade, o novo esperanto. Há Wi-Fi em todo o lado, mas falta conexão emocional. A tecnologia promete conforto, mas a alma continua desconfortável, desalinhada, desencaixada.

Temos casas cheias de electrodomésticos que fazem tudo sozinhos – menos poupar-nos do cansaço. Temos agendas, ‘planners’, ‘apps’ de meditação, mas não temos tempo. E o pouco que temos, gastamos a fingir que está tudo bem. Publicamos fotos a sorrir quando por dentro estamos em frangalhos.

E o feminino, com toda a sua sensibilidade e capacidade empática, sofre ainda mais nesse cenário de desumanização. Não só porque nos exigem tudo (perfeição física, emocional, profissional e parental), mas porque nos culpam quando quebramos.

Somos as primeiras a procurar ajuda, sim. Mas também somos as primeiras a ser chamadas de frágeis. Quando, na verdade, é preciso muita força para pedir ajuda. E mais ainda para continuar a amar num mundo que tantas vezes nos violenta só por existirmos.

E aí vem a parte mais trágica: quando o mundo adoece, nós adoecemos conjuntamente. E não apenas com diagnósticos chiques tipo “burnout”, “TDAH” ou “síndrome do impostor” com direito a ‘posts’ inspiradores no LinkedIn. Adoecemos no corpo, na mente, no coração, nos afectos.

Adoecemos nos silêncios. Adoecemos a tentar parecer bem. A tentar parecer sermos fortes o tempo todo.

Como manter, então, a sanidade num mundo insalubre? Onde se compra equilíbrio emocional com entrega no próprio dia?

A resposta não está nos saldos da farmácia nem nas secções de auto-ajuda. Está nos afectos reais. Nos laços que não se quebram à primeira contrariedade. Nos abraços que não julgam. Nos olhos que verdadeiramente nos vêm. Nos ouvidos que nos escutam. Nos amigos que dizem “estou aqui”, mesmo quando não sabem o que dizer.

No meio disso tudo, a saúde mental feminina é uma ilha cercada de bombas-relógio por todos os lados.

Mal acordamos e já somos bombardeadas. Pelas notificações, pelos prazos, pelos facturas, pelos padrões, pelas exigências absurdas de sermos sempre belas, leves, gentis, magras, mães, amantes, líderes, mas sem jamais perder o sorriso, a doçura ou a compostura. Uma carga mental que não cabe em Excel nenhum.

E assim vamos adoecendo. Devagarinho. Primeiro começa com um cansaço. Depois uma tristeza vaga. Depois, o corpo avisa: não dá mais. As emoções passam a ser um peso. Os dias, um deserto. E o pior: achamos que isso é normal. Que é assim mesmo. Que faz parte da vida adulta. Spoiler: não é normal viver esgotada. Nem sentir medo dentro da própria casa. Nem achar que amar é anular-se.

O que nos salva – e segura – não são os ‘likes’, nem os ‘likes’ em forma de elogios que ouvimos no trabalho por supostamente darmos conta “de tudo” (??). O que nos ancora são os afectos sinceros, os abraços demorados, os sorrisos que fazem chorar, as conversas sem filtro, os vínculos verdadeiros.

O amor, minhas senhoras, é o nosso colete à prova de loucura. O amor é o nosso salva-vidas psíquico. Amor no plural: amor divino, amor romântico, amor de amigas, amor de mãe, amor protector, amor de ventre, amor que acolhe, que escuta, que segura.

É isso que salva. Não é o sucesso. Não é o dinheiro. Não é a aparência. É o amor que conseguimos juntar – e, principalmente, espalhar.

Essa é a verdadeira ostentação de que o mundo precisa: afecto em tempos de indiferença. Presença em tempos de performance. Ternura em tempos de trogloditas. Gentileza num mundo cheio de javardos.

Porque é nos momentos em que tudo falha – e tudo, em algum momento, falha – que o que realmente conta é quem segura a nossa mão e diz: “não és louca, estás só exausta. E eu estou aqui.”

O luxo hoje não é viver com muito. É viver com sentido. E com todos os sentidos. E criar o próprio sentido. Sentindo e tendo tino do que é realmente o sino que nos toca no pino do peito.

É manter a lucidez num mundo que lucra com a nossa alienação e insatisfação.

É resistir ao colapso emocional com poesia selvagem, com fome voraz de troca humana, com coragem e um certo ar de deboche bem direccionado.

É fazer do afecto uma arma de resistência. É fugir para as montanhas quando chegarem os extremistas e os extremismos. E levar na bagagem apenas aquilo que importa: os afectos. Sangue, água, vida. Sorrisos de criança e amor no coração.

É olhar o caos de frente, soltar um “fosga-se”, um “fónix!” bem fundamentado, e depois seguir… com amor-próprio, saúde mental e um riso meio torto no canto da boca.

O luxo hoje é mais do que sobreviver. É viver sendo inteira. A sanidade mental passou a ser o novo “black” básico: vai bem com tudo, combina com qualquer ocasião e salva vidas. Isso, sim, é ostentação que se preze.


Sara Ferreira

Email: apsicologasara@gmail.com

Site: www.apsicologasara.com

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