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Dia da Mulher, Noite do Homem

Celebra-se em Março aquilo a que se convencionou designar como o “Dia Internacional da Mulher”. Apesar de este ser um dia aparentemente dirigido às mulheres, será que o dia DA mulher também poderá ser um dia… PARA o homem? Feminino e masculino vivem tempos curiosos e (talvez) de profunda transformação. Afinal, quais são os fantasmas e as bruxas que nos perturbam? Que (novos) paradigmas, que (velhos) desafios?

Mas comecemos pelo básico. Como se sabe, todos temos um corpo. E duas polaridades, ou, se preferir, energias (físicas e psíquicas). Masculina e feminina, independentemente de se ser homem ou mulher. Existem estas duas energias primordiais, que são a essência da própria Vida. Todos temos, então, estas duas energias primordiais, independentemente de sermos “machos” ou “fêmeas”, que é o mesmo que dizer que no “feminino” coabita o “masculino”, assim como no “masculino” existirá sempre o “feminino”, etc..

Para lá dos estereótipos, existe a chamada ‘masculinidade sagrada’, aquela que nada tem que ver com as distorções sociais, culturais e comportamentais que, desde há séculos, minam totalmente a masculinidade plena.

O que acontece é que, por uma questão de género (e aí entra a educação e a cultura), o rapaz tem um processo por vezes menos facilitado no que toca a “desidentificar-se” com a mãe (tanto na mulher como no homem, e quase que universalmente, a grande e primeira figura de identificação que temos na vida é a Mãe/Feminino), para adoptar um papel e uma identidade “masculina” diferenciada, adequada ao que sociedade lhe exige. Daí ser muitas vezes mais fracturante ou disruptiva esta diferenciação.

E a história demonstra-o bem. O “masculino” constituiu-se em grande escala por “oposição” ao feminino. Se um é preto, o outro é branco, se um tem cabelo comprido, o outro curto, se um usa saias, o outro calças, se um chora o outro não… etc. O facto é que (antes das chamadas representações sociais de género) nascemos seres humanos. Pura e simplesmente. Só depois é que nos tornamos “homens” ou “mulheres”…

Então (e a pretexto do “dia das mulheres”, relembrando) que desafios encontram, actual e presentemente (na chamada “nova era”) os homens?

Cada vez mais esgotados os antigos modelos de comportamento tradicional (tanto para homens como para as mulheres), a “mente superior” tem-nos convocado para redefinir ou reajustar novas expressões do eterno masculino e do eterno feminino.

A verdade é que na essência os valores ou atributos que fazem um “grande homem” são exactamente os mesmos que fazem uma “grande mulher”. E hoje existem novos paradigmas para ambos os sexos.

De certa forma, os homens sentem encontrar-se numa espécie de impasse, pois ao mesmo tempo que lhes é exigida potência e auto-suficiência, também lhes é pedida mais sensibilidade, flexibilidade, conciliação e entendimento. E neste sentido, o homem em “relação” com o “seu” feminino será o pólo do debate.

Para além dos modelos arcaicos e das actuais fórmulas, o que é essencial e eterno na masculinidade? O que faz um homem agir? Existe uma forma de sentir especificamente masculina? Será que o fogo heróico é exclusivo dos homens? Como se acende este fogo, a honra e o compromisso nas veias e o diamante nas consciências dos homens? Qual é o caminho para o coração dos homens e das mulheres? Porque é que tantos homens e mulheres não vivem assim tão bem na sua própria “pele”?

No caso dos homens, através de condicionamentos sociais diversos (de entre os quais “um homem não chora” e outros derivados não menos cruéis) vivemos actualmente aquilo que se pode chamar uma crise silenciosa nos homens, aonde a depressão, a ansiedade e o suicídio são suprimidos pelo consumo de álcool e outras substâncias, pelos comportamentos aditivos, desviantes e de criminalidade. 3 em cada 4 suicídios são cometidos por homens e o suicídio é a principal causa de morte em homens com menos de 35 anos de idade.

Sim, o machismo também estende os seus tentáculos perniciosos sobre os homens. Mata neles a esperança, a gratidão do peito, do colo, da vida doada pela Terra, arquétipo do Feminino, símbolo da Grande Mãe. Um masculino que comunga com o sagrado desenvolve a coragem, um tipo de coragem que não é essa que o embriaga e desafia a vida.

É aquele masculino que zela pela vida, protegendo-a. É a coragem serena do guerreiro, cuja espada não está ao serviço dos mares de sangue, pois ele descobriu que a única poda possível só poderá ser feita dentro de si mesmo, removendo de si os seus bloqueios, terrores, o seu individualismo absorto do mundo à sua volta e as suas inclinações bárbaras. Quem sabe até um masculino que um dia deixe de negar a magia, o milagre, o ventre e a pele. Que possa abrir o coração aprisionado e a própria intuição. Que não sinta mais vergonha dos seus poderes lunares (e solares). Da sua poesia, do seu uivo nocturno. Do seu comovente canto.

Se este mês celebramos o Dia da Mulher, que esta seja uma data também para assinalar a Noite do Homem, ou o processo de se pacificar, integrar com a própria “sombra” – essa obscuridade trevosa projectada, desde o começo da história, sobre a mulher. Do jugo do machismo estrutural, do qual ‘eles’ próprios ainda sequer sonham despertar em massa ou se souberam libertar.

A chamada “masculinidade tóxica” é portanto um sintoma. Não é a doença mas antes um dos sintomas de uma doença que está profundamente enraizada na nossa cultura. Assim como os níveis de depressão (funcional/camuflada), os consumos excessivos de substâncias e os suicídios são também sintomas dessa mesma doença. É fundamental que olhemos para as questões do feminino, do feminismo, do sagrado feminino (o que quer que isso signifique para si) mas também é crucial que percebamos de onde podem vir as múltiplas manifestações dessa masculinidade tóxica, pois, na minha opinião, é igualmente crucial que possamos ir mais fundo na nossa pesquisa interna e colectiva se pretendermos promover uma mudança estrutural na sociedade.

Em determinado momento da nossa evolução civilizacional, onde foi que nos desconectámos do valor sagrado da Vida e traímos a essência da relação que temos com o planeta e com os seres vivos que nele habitam? Quando estamos separados de nós mesmo(a)s, separados de uma parte essencial em nós isso significa que estamos a lidar com um trauma. Isto poderá parecer estranho para alguns porque nos habituámos a pensar o trauma em situações de guerra, em acidentes, em momentos de intensa ameaça que nos deixa uma marca psicológica. Mas o trauma é muito mais amplo e impactante que unicamente o trauma de choque. Existe o trauma de desenvolvimento que, de uma forma ou de outra, afecta cada um(a) de nós. E (só para complicar ainda mais as coisas…) existe ainda o trauma colectivo e o trauma transgeracional.

Neste sentido, tanto o bem com o mal moram dentro de nós. E se vamos fazendo as mesmas coisas uns aos outros – geração após geração – é porque continuamos a projectar o mal para fora de nós numa atitude inconsciente, ignorante, dualista, que mantém a vitimização e desresponsabiliza as pessoas, impede-as de se porem em causa e amadurecer.

Por mais espantoso que seja contemplarmos e vivenciarmos a enorme beleza que existe no mundo e o enorme milagre que é a Vida, não podemos ignorar que cada ser, quando nasce, entra num mundo onde a violência, o ódio, o abuso e a exploração são uma experiência comum. Não podemos ignorar que os valores e os ideais da sociedade moderna não estimulam propriamente a expressão criativa da criança, que proclamam a competição e incentivam à separação. Género, Etnia, Religião, Estrato Social. Este trauma é carregado pelos nossos antepassados geração após geração e, agora, carregamo-lo nós enquanto nos preparamos para o passar para os nossos filhos que o irão carregar também se não interrompermos este ciclo. Este trauma, esta dor, tem assolado homens e mulheres e conduziu-nos para uma crise ecológica e nas relações sem precedentes, onde a nossa própria sobrevivência (aos mais diversos níveis) está em risco.

Se cada um de nós se responsabilizar pelo seu próprio mal e pelo seu próprio bem, se se colocar em causa, poderá por certo reflectir nos seguintes desafios (para homens E mulheres!), deixo aqui em pauta apenas alguns deles:

– qual é a essência de mim que eu não tenho conseguido mostrar?

– tenho estado muito apegado(a) ao meu “verniz” social?

– tenho reprimido o meu desejo de poder?

– tenho reprimido a minha necessidade de afecto?

– como uso o meu poder pessoal?

– será que projecto para fora as minhas necessidades e conflitos internos?

– será que o que mais admiro e o que mais detesto nos outros são coisas que em mim mesmo(a) precisam ser abraçadas, amadas, transformadas?

– será que não estamos a transformar príncipes em sapos ou mulheres em meros bodes expitórios com a nossa insegurança, cobranças e falta de amor-próprio e cuidado emocional?

É claro que não é fácil reconhecer nada disto, mas já que tudo isso veio às claras, é melhor aceitar e entender que temos aqui uma excelente oportunidade de resolução e transformação.

No entanto, para lá das nossas crenças aziagas e das filosofias particulares que podemos ter sobre a vida quotidiana, o mundo pula e avança. E a verdade é que todos queremos a mesma coisa, e nisso vimos todos ao mesmo. Que é o quê? Queremos amor e sucesso. Nunca vi ninguém que não o deseje (a ambos). E conheço um magote de gente que tem precisamente as duas coisas porque isto aqui não é uma competição e uma coisa não tem de excluir a outra. Pode e deve ser para todas as pessoas. Para si, para mim, para o António, para o Manel, para a Joana, a Joaquina, para a Maria Caxuxa, para o Rodrigo, para o João, para a Keyla e para todos os seres humanos.

É uma forma de tomar consciência das nossas crenças limitadoras e fazer algo para mudar. O verdadeiro poder advém daqui. Mulheres e homens!

Acredite ou não, caro(a) leitore(a)s, no fim do dia, sabe o que é que todas as pessoas (verdadeiramente) desejam para si, num relacionamento? Que o(a) outro(a) o(a) permita ser e aquietar a alma das labutas cansadas. Refastelar os corpos num amplexo apertado, descansar o rabo num assento partilhado e sossegar o coração numa relação feliz e cheia de cumplicidade, de parceria, de vida, de mãos dadas estrada fora e dedinhos entrelaçados. E também de silêncios curadores que signifiquem apenas que aqui estamos nós (e, enfim, sós).

Mais ou menos independentes, o facto é que todos somos por natureza INTERdependentes. Tanto na criação e manutenção de elos afetivos no âmbito dos relacionamentos ou mesmo na nossa vida em sociedade.

Badernas psicológicas, desequilíbrios emocionais, falta de ética ou carácter surgem em qualquer situação, pois são falhas humanas e não exclusivamente masculinas ou femininas.

Se concluirmos que a masculinidade tóxica (que vitima diariamente mulheres e homens) é também o sintoma de um trauma colectivo e transgeracional que se expressa no indivíduo, então torna-se essencial que se criem espaços seguros de partilha e de exploração individual e colectiva onde os homens e as mulheres possam olhar para os seus condicionamentos e para as suas feridas e encontrar um caminho de regresso ao seu coração.

Particularmente para os homens, não é apenas uma redescoberta do seu mundo emocional, é o confiar de que será aceite e compreendido na expressão da sua vulnerabilidade. É um caminho de reencontro consigo mesmo, de reencontro com os seus irmãos, com as suas irmãs, com as suas companheiras amorosas, com os seus filhos e as suas filhas, com o planeta e com a espiritualidade.

É importante caminharmos no sentido de um masculino e de um feminino reconciliados. Estamos ressentidos. A guerra que vivemos entre homens e mulheres faz de ambos vítimas. O trabalho de cura e reparação não pode acontecer apenas a nível individual porque estamos em contra-relógio. É fundamental que se criem espaços terapêuticos onde as pessoas e as comunidades se possam encontrar e caminhar no sentido da reconciliação e da cura do trauma colectivo.

A reconciliação do masculino assim como o empoderamento do feminino representam a unificação dos opostos em nós mesmos e nas nossas relações. A humanidade caminha para um dos maiores desafio que já enfrentou. As crises humanitária, financeira, ecológica colocarão a sobrevivência das gerações futuras em sério risco e compete a nós, agora, iniciar esse processo e reverter esse destino.

Por estes dias (e sempre, de preferência!) proponha-se a uma busca, interior e exterior, proponha-se a uma ‘espeleologia’ ao mais profundo de cada um de nós descobrindo o que é ser homem, o que é ser mulher, sem preconceitos, sem papéis rígidos, sem guiões obsoletos, sem crenças nem limites.

É encontrar o seu lugar no mundo explorando o divino e o heróico em cada um(a) de nós, através de uma religação à natureza do que é o essencial.

Onde quer que esteja a sua trincheira, se conseguir manter a sua integridade e respeito por aqueles que coabitam o seu espaço, seja numa peleja com um Zé ou com uma Maria, o seu universo irá expandir-se e o mundo abrir-lhe-á as portas em todas as direções.

Em paz, em equilíbrio, justiça em cada relação, sem jogos de poder, sem dependência emocional e subjugação a ninguém nem dominando ninguém. Sendo um pontinho de luz, de amor, exemplo, paz, expansão, liberdade, equilíbrio, cura para cada um(a). Libertação. Os grilhões que nos têm mantido acorrentados e ao mesmo tempo cronicamente separados uns dos outros são tremendos.

Mas este é o tempo e o espaço. Século XXI. Ocidente. Diga o que tem a dizer! Mostre-se! Seja! Ilumine!

Se temermos as fogueiras e o seu poder de destruição, podemos reacendê-las com um sopro de vida e dançarmos juntos ao seu redor.

Sara Ferreira

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